Ser Pai

O PAI+

Entrevista com Halina Grynbe - Psicóloga

father-and-child 200x180BDe tanto glorificar a figura da mãe, nossa cultura foi relegando a um perigoso segundo plano alguém muito importante para uma saudável estruturação da personalidade do filho.

Antigamente, quando se tratava do desenvolvimento da criança, dava-se muita ênfase às relações mãe-filho. Hoje, fala-se bastante no papel do pai. O que mudou nesse aspecto?

HG- Realmente, nos estudos mais recentes da personalidade humana nota-se uma reavaliação da figura paterna e sua função na estruturação da personalidade. Até há algum tempo, a psicologia do desenvolvimento era quase omissa em relação ao pai, enquanto uma importância marcada às relações mãe-criança, modelo inicial sobre o qual se apoiaria todo o desenvolvimento posterior. O que não deixa de ser válido. Só que as teorias mais recentes admitem a deste terceiro elemento que é representado e atuado pelo pai.

Então não é correta a idéia de que o pai só tem condições de ligar-se verdadeiramente à criança quando ela já está numa fase posterior de desenvolvimento, lá pelos dois ou três anos?

HG- Não. A criança não se liga ou precisa do pai só no momento em que já tem a percepção e os sentidos desenvolvidos, como muita gente ainda acredita. Essa relação é necessária desde o nascimento. Quando a criança nasce, não tem identidade física ou psíquica definida, é um continuum materno, um prolongamento da mãe, um ser que mal sente, mal vê, não fala. Pouco a pouco, os sentidos vão se desenvolvendo e criando definições, e percepções mais organizadas. Mas isso não implica que a identidade esteja se formando adequadamente: a criança ainda é continuação da mãe. Tem um cordão umbilical não físico, mas afetivo; é intensamente dependente, inseparável da mãe. Aí então se faz necessária a função paterna, que provoca um corte nesse cordão umbilical psíquico; uma ruptura simbólica entre a mãe e o filho.
O pai é aquele que promove o rompimento da simbiose com a mãe, o vínculo onde não há duas pessoas mas apenas uma indiferenciação, possibilitando ao filho tornar-se sujeito, com uma identidade, no mundo do real.



Na prática, como deveria atuar o pai para exercer mais eficientemente a introdução desse terceiro elemento ?

HG – Esse terceiro elemento existirá sempre. Uma criança sem o pai pode crescer sem problemas se a mãe permitir que entre ela e o filho se estabeleça uma distinção, que entre eles se coloquem outros elementos. Suponhamos que o pai tenha morrido quando a mãe estava grávida; não é porque o pai falta na realidade objetiva externa que não vai haver esta função paterna. Tudo o que leva a criança a se diferenciar da mãe, a ter emoções e experiências que reconhece como suas, tudo isso é fruto dessa presença que chamamos figura paterna. Que pode ser um tio, um professor, qualquer homem. Ou pode ser a própria mãe que contém em si – e demonstra – desejo de dar liberdade à criança, vontade de que o filho seja diferente dela e até de que tenha necessidades que ela, a mãe, não possa atender.



Isso significa que a família não precisa contar necessariamente com um pai e uma mãe, e sim com quem exerça satisfatoriamente essas funções?

HG – Exato. A criança pode ser criada por uma tia e um avô, ou pode haver uma dúzia de pessoas no papel de mãe e mais um dúzia na de pai.



Os papéis do pai e da mãe não ficam muito limitados na medida em que têm que se adequar cada um à sua função determinada ?

HG – Delimitar os papéis é importante, de fato. Isso não quer dizer em absoluto, que a mãe tenha de ficar só em casa cuidando do filho e o pai na rua, providenciando o sustento da família. Mas existe uma diferença fundamental entre ambos. Basta comparar o vínculo materno direto, biológico – grosseiramente biológico com os sentimentos que a criança estabelece em relação ao pai. Que é, pelo contrário, alguém que interrompe esse vínculo biológico, transformando a ligação imediata que a criança tem com a mãe.



A qualidade do vínculo paterno depende então da atuação do pai, enquanto a ligação com a mãe se estabelece naturalmente.

HG – A qualidade do vínculo afetivo materno também depende dela. Existe um vínculo de base biológica. Mas se ela for afetuosa, se permitir que o filho desenvolva o sabor da ligação, será diferente daquela em que a mãe não dá à criança, por exemplo, a necessária liberdade de ser e existir independente dela.

Na prática, o que diferencia o papel do pai na família atual e na família tradicional ?

HG – O papel em si não é basicamente diferente. Apenas lhe é atribuída importância muito maior no desenvolvimento da criança e se sabe que é mais precoce a necessidade dele, já que se instala desde o primeiro momento na vida da criança.
Num nível concreto, é claro que há grande diferença entre um pai afetuoso, participante, e um pai que se omite, que deixa tudo por conta da mãe. O pai que fica longe, do lado de fora, contribui para criar filhos muito dependentes da mãe, com muita dificuldade para enfrentar futuramente uma autoridade, para viver uma vida autônoma, para se confrontar com o poder.



O contato precoce entre o pai e a criança, não podendo ser verbal, teria que ser físico ?

HG – Ele não precisa ser verbal, necessariamente, já que o contato físico é sempre importante para a criança. É fundamental que a criança perceba as diferenças entre o pai e a mãe – o cheiro, a textura, a forma de aproximação –- porque a partir de constatações como essas é que ela se organiza. Por isso, não faz mal que o pai seja desajeitado ao trocar a fralda, ou que mais atrapalhe do que ajude quando “colabora” na hora do banho.

Ou seja: a mãe deveria estimular o pai a participar diretamente dos cuidados da criança ?

HG – É claro. E o fato é que muitas vezes a mãe não permite a participação do pai. Ela pode alegar que está com pressa, que não adianta a ajuda dele – e isso talvez até seja verdade. Mas o efeito desse “fechamento” é não permitir a ruptura da conseqüente transformação de seu vínculo com a criança. Consciente ou inconscientemente, ela protege sua ligação com o filho, não permitindo uma intromissão, que é absolutamente necessária.



Há outras maneiras de evitar-se o fechamento, o exclusivismo da ligação mãe-filho ?

HG – Por exemplo, quando o pai volta a solicitar a mãe como mulher, depois do nascimento da criança, convém que ela aja como sua mulher, que se sinta sua esposa, independente da maternidade. A relação marido-mulher exclui a criança. E a exclusão é benéfica para a criança, porque lhe permite existir sozinha, desligada da mãe, criando um espaço interior individual. É preciso também que o pai tenha coragem de solicitar a mãe como mulher de novo, que tenha coragem de dispensar cuidados à criança. Que agüente a impressão de estar roubando a mãe do filho. Que reconheça e até possa demonstrar que sente ciúmes daqueles dois que se dão tão bem, a ponto de aparentemente não precisarem dele.


A impressão do pai de estar sendo excluído da relação mãe-filho é muito comum ?

HG – Não é uma impressão: é um fato. É muito comum o pai ser deixado de lado quando o filho nasce. Ou mesmo desde a gestação. Aliás, é nessa época que muitos homens se ligam a outras mulheres, têm aventuras extra-conjugais. O homem pode colaborar para que essa exclusão não aconteça. Suportando as emoções que vive. Não fazendo de conta que não está com ciúmes, não apelando para justificativas como “medo de machucar o feto” para evitar relações com a mulher, quando, na verdade, o que incomoda é a presença desse intruso, desse ser que parece complementar perfeitamente a mulher, e dispensá-lo.



Quando o pai é uma figura pouco atuante, como se reflete essa omissão na vida da criança ?

HG –É uma coisa que pode ser muito grave. Como se uma parte da própria criança fosse irreal – um fantasma. Usando uma imagem: é como uma pessoa que tivesse consciência só de um lado do seu corpo. O outro lado, embora movimentando-se, agindo, não seria sentido como dela. É como se dentro dela perdurasse um espaço vazio, oco, irrecuperável. Quando o pai é uma figura fraca e a mãe envolvente, totalizadora, é muito comum, por exemplo, o filho vir a ter problemas de aprendizado de leitura e escrita. Isso reflete sua incapacidade de alcançar a ordem simbólica, a ordem da palavra. Porque a leitura, a palavra, é um símbolo. E símbolo pode ser grosseiramente definido como aquilo que faz presente o ausente. Quando a gente lida com um símbolo, está lidando com uma ausência. Se a criança não aprende a usar o símbolo, é porque não suporta o contato com essa ausência, ou porque a ausência é excessiva.



Que outras dificuldades podem surgir ?

HG – Quando o pai existe, mas é omisso, talvez seja mais difícil a criança se ligar a outras figuras masculinas para que funcionem como complemento da imagem paterna. Nesse caso, é comum a mãe procurar suprir a falha, substituir o pai frágil tornando-se superprotetora, criando dificuldades ao filho em se separar dela, em construir uma vida própria, o que pode resultar inclusive em problemas de identidade sexual mais ou menos graves. Em casos de homossexualidade masculina freqüentemente se constata que a criança teve um pai muito frágil e uma mãe muito poderosa. A filha, em situação semelhante, pode tornar-se super agressiva, super hostil, dura, rígida, incorporando a figura masculina, revelando isso no seu comportamento.



O que acontece quanto a mãe é muito apagada e o pai muito dominador ?

HG – No caso do menino, pode tornar-se um homem que não consegue se agarrar a nada, que não fica muito tempo com nada, que muda constantemente de casa, de mulher, de profissão. Basicamente, ele carrega uma certa inquietação, como se nunca tivesse tido um ninho, mas fosse constantemente impelido por uma ventania.
No caso da mulher, talvez ela tenda a aliar-se ao pai (que pode ser temido, mas passa a ser mais importante que a mãe) e a voltar-se contra essa mãe submissa. Ela imitará ou complementará o pai, se tornará sua parceira, interessando-se por suas atividades, fazendo aquilo de que ele gosta. Relegando a mãe ao papel de filha.



De que maneira essa situação interfere na vida futura dos filhos ?

HG – Todos nós sofremos interferências. Todos nós somos atrapalhados de alguma forma por dados como esse. Todos nós temos uma história. Por isso, não se admite a idéia de homem “normal” e de mulher “normal”. O homem normal é esse, o que tem pai e mãe assim ou assado – que não são pais ideais, porque pais ideais não existem. O homem doente é aquele que carrega um nível de contradição tão grande a ponto de causar-lhe um problema sério na organização da personalidade. A personalidade pode ser bastante estruturada, equilibrada, apesar das marcas negativas de um travo que, aliás, nunca resultam unicamente do relacionamento com o pai ou com a mãe, mas daquele mantido com o todo familiar.



Seria aconselhável que a família se abrisse mais a influências externas, que tudo não ficasse tão por conta do pai e da mãe ?

HG – Há um estudo em antropologia psicanalítica nesse sentido. E mostra que em sociedades onde a responsabilidade paterna e a materna estão difusas, onde há organização tribal, se distribuem mais esses papéis, há uma incidência menor de doenças mentais, porque os vínculos ficam menos sobrecarregados. O amor e o ódio podem expressar-se mais separadamente, porque há muitas pessoas para odiar e amar – e nós sabemos como é difícil suportar o ódio por alguém de quem se precisa muito. Nossa família, cada vez mais reduzida, está super dimensionando os sentimentos, porque tudo se passa entre poucos membros. Uma forma de amenizar esse problema é deixar as crianças se ligarem a outras pessoas de ambos os sexos. É permitir-lhes o máximo de experiências fora de casa – na escola, na colônia de férias – mesmo que fujam temporariamente do controle dos pais. Desde que sintam sempre que têm para onde voltar. Porque o pai e a mãe são um porto indispensável. Mas o navio precisa navegar.

Imprimir Email