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HOJE TEM BRINCADEIRA?

Difícil alguém negar que uma criança precisa brincar. Entretanto, raros adultos levam essa necessidade a sério. Em casa, na rua e especialmente nas creches e escolas, o direito à brincadeira é reconhecido por muito poucos como essencial ao desenvolvimento infantil.

"A brincadeira é um aprendizado vital que hoje está totalmente cerceado", diz a socióloga e pedagoga Maria Stela Graciani, coordenadora do Núcleo de Trabalhos Comunitários da PUC/SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). As limitações começam em casa. A pedagoga lembra as típicas recomendações dos pais antes das brincadeiras: "Não suje a roupa" ou "Não vá quebrar o brinquedo". Para muitos, diz a pesquisadora, o brinquedo se tornou mais importante que a brincadeira. "Ele é hoje uma referência do poder aquisitivo em todas as classes sociais", diz.

Se não há estímulo para brincar em casa, a situação piora na creche, na pré-escola e depois na escola. "Não há tempo nem espaço dedicados à brincadeira, nem brinquedos. É rara a escola equipada, que invista nesse aprendizado", diz a socióloga Gisela Wajshop, da equipe de Educação Infantil do Ministério da Educação. "A escola simplesmente matou a brincadeira", resume Maria Stela, da PUC. Na sala de aula, ou ela é utilizada com um papel didático e acaba totalmente dirigida, ou é considerada uma perda de tempo. E, até na hora do recreio, precisa conviver com um monte de proibições - como também ocorre nos prédios, clubes e condomínios.

Esse descaso talvez se deva à falta de conhecimento sobre os benefícios da brincadeira para o desenvolvimento infantil. "Brincar é um aprendizado, que se tornou vital em nossa sociedade", diz Gisela. Segundo a socióloga, "a infância é um tempo para brincar e através da brincadeira entrar no mundo dos adultos, não de forma imediata, mas simbólica". Na brincadeira, a criança dirige, cuida do bebê, vai trabalhar, cozinha, constrói casas, tudo o que percebe no mundo adulto. "Nesse espaço imaginário, ela elabora seus conflitos, sentimentos e medos", diz Maria Stela. Por isso, numa brincadeira de casinha, logo aparece a briga dos pais, a bebedeira do vizinho ou a bronca da professora. Brincando, a criança amadurece e se fortalece.

Ao mesmo tempo, brincar é criar, tomar iniciativas. É aprender as regras e limites para que o jogo funcione. "A criança reconhece a importância de normas legítimas", afirma Maria Stela. Descobre valores. Aprende a conviver sem gritar e brigar. Ganha auto-estima e confiança, pois se sente capaz de participar. Desenvolve a concentração, a coordenação e a habilidade motora. Dá asas à imaginação e à fantasia.

Mas, segundo Gisela, "temos que nos perguntar quais crianças brasileiras têm esse direito respeitado. As crianças trabalhadoras? As que vivem na miséria? As que estão na escola?"

Iniciativas

Embora ainda timidamente, a resposta começa a surgir em diferentes cantos do país, vinda de projetos que buscam, por meio da brincadeira, fazer a infância brilhar. Assim, almejam melhorar o aproveitamento escolar e, até mesmo, alterar as relações na comunidade.

Dona Lúcia Maria dos Santos Farias conta que, quando seus filhos voltam da escola, vão correndo para a brinquedoteca. "E, se ela está fechada, eles ficam tristes, porque não vão desenhar nem poder mostrar o que fizeram para a 'tia'." Mãe de oito filhos (o menorzinho com 2 anos e o maior com 17), ela acha importante que as crianças tenham um lugar onde se divertir. "Afinal, a gente nunca sai de casa", completa dona Lúcia, aproveitando o tempo para pendurar a roupa no varal. Moradora da favela Raul Seixas, na zona leste de São Paulo, ela passa o dia cuidando da roupa, meias, sapatos, banho e comida das crianças. Seus olhos chegam a sorrir quando se lembra do único passeio do ano passado. "Fomos todos ao circo, até eu! Foi muito bom. Agora estou esperando o dia de ir ao zoológico." Os passeios são raros, mas a brinquedoteca abre sempre que quiserem. "Fico mais tranqüila, sabendo que os meninos não estão soltos por aí", completa dona Lúcia. Sua filha Lucilene, nos seus 12 anos, tem outro motivo para gostar do projeto: "Aqui não brinco sozinha", diz, mostrando as flores que acaba de pintar.

A brinquedoteca não tem mistérios: uma pequena sala com mesas, caixotes, brinquedos de montar, lápis, quebra-cabeças, bonecas e bolas, onde as crianças brincam sob o olhar atento de uma educadora, a querida "tia". A sala foi construída há dois anos, em mutirão, pelos próprios moradores, dando continuidade ao projeto Ônibus Ludicidade, do Núcleo de Trabalhos Comunitários da PUC/SP. O ônibus, que agora está em outro bairro da cidade, é uma brinquedoteca ambulante e ficou em Raul Seixas por dois anos. "No começo o grande medo das crianças é que a gente fosse embora e não voltasse mais", lembra a pedagoga Adriana Teixeira da Costa. Agora, a chave da brinquedoteca fica com as mães e é pedida pelas crianças maiores, numa tentativa de fazer com que a comunidade assuma o espaço criado.

"Nosso primeiro desafio foi criar um novo tipo de convivência entre as crianças. Antes elas não se entendiam, gritavam, batiam", diz a pedagoga Rosana Padial, que acompanha o grupo atualmente. "Com as brincadeiras, conquistamos outra forma de relacionamento entre elas. Além de enfrentar o vazio material e social em que vivem, pois muitas não recebem estímulo em casa e têm problemas na escola", diz Adriana. Em sua opinião, falta repertório para elas enfrentarem a primeira série. E, através das brincadeiras, tenta-se perceber suas dificuldades e desenvolver sua motricidade, atenção e imaginação.

Desejo de futuro

O brincar e o estudar também fazem parceria em Salvador no Centro-Projeto Axé de Defesa e Proteção à Criança e Adolescente. Chegam ao projeto meninos e meninas que estão fora da família e da escola e para quem o futuro é uma grande incógnita. "Através da brincadeira, que também é arte e cultura, tentamos abrir espaços no mundo. Queremos que a criança crie um projeto de vida pessoal e social", explica Valda Vilanova, coordenadora pedagógica do projeto. Com essa perspectiva, nasceu neste ano o Canteiro dos Desejos. Afinal, nas palavras de Valda, "sem desejo, a gente não caminha". Diariamente, mais de 70 crianças de 5 a 12 anos se encontram para brincar. A brincadeira nasce inspirada num tema (este ano, a cultura indígena) e logo cresce nas rodas de cantiga, construção de brinquedos, histórias em quadrinhos, desenhos.

O Sesc de São Paulo desenvolve em suas unidades o Projeto Curumim, destinado preferencialmente a crianças de baixa renda. Técnicos da entidade promovem programas de recreação voltados para o desenvolvimento social, em que não faltam noções de ecologia, expressão corporal, artes, ciência e tecnologia.

Jogos de faz-de-conta, teatrinhos, pintura, brincadeiras de corda, palmas, bola, corrida e amarelinha também ganham vez no Espaço de Vida da Criança, um projeto do Serviço Social da Indústria (Sesi), em parceria com a Fundação Bernard van Leer. Desde o final do ano passado, a brincadeira tomou conta de espaços comunitários nas cidades de Indaiatuba (SP) e Fortaleza (CE) e na área rural de Arês e São Gonçalo do Amarante (RN) e Ilha Grande de Santa Isabel (PI). Duas vezes por semana, mais de 600 bebês e crianças de até 6 anos se encontram para novas brincadeiras.

"Brincar não é um passatempo, mas um universo rico para o desenvolvimento infantil", destaca a psicóloga Luzia Torres Gerosa, gerente-geral do projeto. "Se os métodos de educação formal não atingem toda a população, por que não investir nesses novos caminhos?", questiona. Ao brincar, segundo Luzia, conquista-se auto-estima, autonomia e criatividade - fatores essenciais para resistir às adversidades e mudar. Uma conquista que aos poucos já vai se revelando: "Os próprios pais contam que seus filhos estão mais comunicativos, tranqüilos e alegres", comemora Luzia. As crianças falam, inclusive, das brincadeiras, e fazem os pais lembrarem o que é o brincar.

Fonte: http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas_sesc/pb/artigo.cfm?Edicao_Id=22&breadcrumb=1&Artigo_ID=17&IDCategoria=292&reftype=1

Written by IMMACULADA LOPEZ .

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