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VIOLÊNCIA DENTRO DE CASA : MÃE É A MAIOR AGRESSORA DOMÉSTICA

Ajoelhar no milho, uma antiga tortura aplicada por pais a seus filhos como forma de castigo, não é coisa do passado. Somente este ano o Disque-Denúncia (2253-1177) recebeu cerca de dez queixas. Tampouco teve fim aquela abominável punição de se queimar crianças com colheres esquentadas no fogo - foram mais de 30 denúncias. Em pleno século XXI, ainda não cessou a repudiável reprimenda de se pôr a mão da criança diretamente na boca do fogão aceso. Informações como essas, sobre maus-tratos contra crianças, comovem os funcionários do Disque-Denúncia, que acaba de fazer um levantamento inédito das denúncias recebidas no mês de julho. O que mais surpreendeu na pesquisa, à qual O GLOBO teve acesso com exclusividade, foi o principal agressor: a mãe das crianças.

De um total de 218 denúncias de violência contra crianças e adolescentes recebidas em julho, 191 tiveram os agressores identificados. As mães foram apontadas como agressoras em 107 casos (56%); seguidas dos pais com 44 denúncias (23%); padrastos e madrastas com 20 casos (10%); avôs e avós com sete informes (4%); tios e tias com seis (3%); irmão e irmã mais velhos com quatro (2%); e outros agressores não identificados com três casos. As agressões físicas contra crianças e adolescentes somaram 124 casos, 57% do total. Depois aparecem negligência, com 72 casos (33%); violência psicológica verbal, com 15 (7%); cárcere privado, com quatro (2%); e violência sexual, com três (1%).

Socos, tapas e chutes foram os tipos de agressões mais denunciados (46%). Fios, arames, correias e similares representaram 16%, enquanto pancadas com pedaços de madeira, incluindo varas, 14%. Armas brancas e cigarros somam 4%. Vinte por cento das denúncias estão na categoria "outros", que inclui bater a cabeça contra paredes e, por exemplo, ajoelhar no milho. A maioria das vítimas tem entre 3 e 11 anos, o que representa 64% das denúncias. Vinte por cento têm menos de 3 anos e 16% mais de 11 anos, segundo o estudo do Disque-Denúncia.

Já são 761 denúncias confirmadas em 3 anos

Em Bangu, por exemplo, uma criança de 8 anos teve uma das clavículas fraturadas por causa de sucessivos espancamentos do agressor, o pai. O caso foi registrado na 34 DP e encaminhado ao Ministério Público, segundo Rosana Bacha, gerente de projetos de casos de violência contra crianças e adolescentes do Disque-Denúncia. Em Campo Grande, uma menina de 7 anos foi encontrada abandonada com hematomas no rosto provocados por agressões cometidas pela própria mãe. O caso foi registrado na Delegacia de Atendimento à Mulher da região. Outro caso chocante relatado ocorreu em Madureira, onde uma criança de apenas 3 anos tinha queimaduras nas mãos. A mãe da criança a queimara com uma colher esquentada no fogo. A criança está em tratamento e a mãe responde a processo no Ministério Público.

De 2000 a 2003, o serviço recebeu 15.795 denúncias de crimes contra crianças e adolescentes, sendo que 761 foram confirmadas. O ano de 2003 foi o recordista de denúncias recebidas. Foram 5.383. De janeiro a julho deste ano, foram 3.065 denúncias, 244 a menos do que no mesmo período do ano passado, porém 1.320 casos a mais do que de janeiro a julho de 2002. A maioria das ocorrências denunciadas em julho foi no Rio, que teve 91 casos. Depois aparecem Nova Iguaçu, com 15, e Duque de Caxias, com 14.

Todas as denúncias recebidas são repassadas aos órgãos oficiais responsáveis pelo bem-estar de crianças e adolescentes: o Juizado da Infância e Juventude, os conselhos tutelares, a 25 Promotoria de Investigação Penal do Ministério Público e a recém-criada Delegacia de Proteção a Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência (Decav), além de outras instituições de assistência como a Fundação para a Infância e a Adolescência (FIA). Segundo o delegado-titular, Leonardo Tumiati, que está fazendo um levantamento dos casos mais comuns, abuso sexual tem sido o crime mais registrado. Criada em 23 de junho, a Decav já recebeu mais de 740 denúncias. Em junho, 45% dos casos foram de abuso sexual; em julho foram 35%; em agosto, 38%; e em setembro, 37%.

- Ainda estamos nos estruturando, com uma equipe pequena, de 18 agentes. Só podemos atender a casos ocorridos na capital. O ideal é expandir a idéia. Temos policiais psicólogos para atender os casos - disse.

Um dos casos recentes mais rumorosos foi registrado na Delegacia de Atendimento à Mulher de Jacarepaguá, no Tanque. Um homem de 62 anos, vizinho de uma família com cinco crianças no bairro do Anil, é acusado de abusar sexualmente de três meninas, de 10, 8 e 7 anos. Segundo a mãe, ele aproveitou seu período de trabalho para aliciar as meninas, convidando-as a conhecer brinquedos em sua casa e assistir a desenhos animados.

- Ele disse na minha frente o que fez a elas e disse que gostou muito. Fiz seis anos de boxe e dei uma surra nele. Depois ele pegou um revólver, apontou para minha cabeça e só não atirou porque a rua estava cheia de gente. É um monstro. Tive que parar de trabalhar. Minhas filhas estão traumatizadas e não tenho nem dinheiro de passagem para levá-las a um psicólogo - conta a mãe.

As irmãs conseguiram pegar da casa do acusado um livro onde ele registrava encontros sexuais supostamente com crianças. Elas contam que salvaram uma irmã batendo com um cabo de vassoura nas costas dele.

Promotora diz que juízes não decretam prisão

A promotora Ana Lúcia da Silva Mello, da 25 Promotoria de Investigação Penal, que, entre outras atribuições é responsável pelo encaminhamento de crimes contra crianças e adolescentes, lamenta a falta de especialistas na Justiça para avaliar casos específicos como esses. E revela que nem 10% das prisões preventivas solicitadas por ela à Justiça por acusações de abuso sexual foram decretadas:

- Em 80% dos casos de abuso sexual que chegam até mim, peço prisão preventiva do acusado. O Rio tem 40 varas criminais e nenhuma específica para tratar de casos envolvendo crianças e adolescentes. Outros estados têm. Os juízes costumam indeferir meus pedidos porque não acham necessárias as prisões. Estão acostumados a lidar com casos envolvendo tráfico de drogas e outros crimes.

Um dos órgãos de assistência é a Fundação para a Infância e a Adolescência.

- As vítimas são encaminhadas para a FIA para que façamos um estudo da violência notificada. No caso de os agressores serem os pais nossa função não é punitiva, o que é responsabilidade da Justiça, e sim de reeducação. Tentamos conscientizar os pais a agir de forma diferente. E as crianças que ficam traumatizadas são encaminhadas para a rede de serviços de assistência, o Núcleo de Atenção à Violência, que funciona no Instituto de Psiquiatria, na Praia Vermelha - informou Myrian Rose, gerente do Programa de Atenção à Criança e ao Adolescente Vítima de Maus-Tratos, da FIA.

O GLOBO
Rio, 03 de outubro de 2004

Written by Gustavo Goulart (O Globo).

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