DA INGRATIDÃO ATIVA DE FILHOS
Aparentemente não seria próprio para compor uma publicação especializada como esta um texto sem o jargão forense ou matéria jurídica e sim sobre comportamento. Considero-o, no entanto, de interesse dos operadores do direito, enquanto fenômeno social emergente que estará desafiando prestação jurisdicional não sei se mais enérgica ou se mais melindrosa.
Chegaria a ser acaciana, não fosse indispensável como intróito, a observação de que em qualquer Estado de Direito a maioria vive, e convive, sob um ordenamento legal e na conformidade da herança genética e social legada pelos seus antepassados desde os tempos mais remotos em que seus limites eram os tabus e seu respeito era a um direito Natural. A síntese fundamental desse necessário procedimento pessoal auto-policiado para atender os limites legais estará no atendimento do apelo - ainda Natural - para somar-se, enquanto indivíduo membro do núcleo primário da sociedade e que é a família, no amplo contexto da própria preservação e sobrevivência da espécie. Tanto melhor para esse indivíduo se o desenrolar da sua vida ocorrer numa convivência familiar permanentemente solidária em que os adultos fortes, acodem os mais frágeis, os menores e os demais incapazes. Nesta solidariedade estará imanente a gratidão pelo anteriormente recebido. Importará no desprendimento de cada um para o recíproco e permanente suprimento das necessidades dos familiares que se alternarão na variação cíclica do tempo que faz nascer, viver, envelhecer e morrer. Num transcurso em que tudo se altera: as idades, as circunstâncias, e as capacidades. Nesse ritmo os indivíduos, se normais, seguirão provendo suas carências cognitivas, afetivas e sexuais. Ao tornarem-se pais e mães aquele apelo natural os compelirá a trabalhar para a segurança da família que constituíram e para um melhor futuro para os seus filhos. Mas, todos conhecemos exceções que nos chocam, casos de pais desnaturados. Alguns, espertos na própria maldade, dão uma de godelo, pássaro que bota seu ovo no ninho do tico-tico que o choca e cria sozinho. Outros cuidam do seu filho apenas enquanto infante e depois somem da vida dele. E, noutras variações, há pais que depois de se separarem das mães abandonam também os filhos. Todos caracterizando sua violação do dever moral/natural de lhes prestar assistência afetiva, material e escolar. E, porque antisocial, esse comportamento também tem previsão legal de crime e de infração civil do dever de alimentar e assim sujeito à uma correição que resultará na quantificação dos alimentos devidos e no constrangimento judicial para o seu pagamento até sob pena de prisão.
No entanto, o cerne do nosso assunto está no surpreendente crescimento dos casos do que seria o outro lado da moeda desse comportamento lamentável mas do cotidiano dos profissionais do direito. São os casos que, de início, rotulei como verdadeiro fenômeno social emergente: os da ingratidão ativa de filhos, tão pior quanto materializada na violência contra pais, com ênfase contra as mães, mais oportunas como vítimas por sua menor capacidade de reação. Com horror enquanto ser humano, são dramas que tenho vivenciado em consultas como resultado de uma absurda e crescente violência filial. A conjugal, de marido x mulher na baixaria das agressões físicas até com tragédias resultando em assassinatos e suicídios, e a violência paterna, de pervertidos marcando filhos indefesos no corpo e na alma com surras covardes, são uma cruel realidade que a mídia se encarregou de popularizar e para a qual nós buscamos a previsível prestação jurisdicional. A violência que qualifiquei de especial é subjacente àquela dos noticiários, é a que não tem sido exposta porque o pudor e o amor imortal de genitores bondosos silenciam as ocorrências. É a que vem sendo praticada, então impunemente, por muitos filhos e sob inimagináveis formas físicas, psíquicas e morais. Nessas situações, não raro o antigo amor filial nascido da gratidão se transforma não só em ódio como em agressões malnascidas nos desvãos da banalização do mal embutido na informação deletéria. Destaque-se que, na prática, a agressividade contra o pai é limitada, quando não inibida, pela maior força física dele, o que inocorre quando contra a mãe, com agressões sempre consumadas e tão mais revoltantes quanto sejas também covardes porque contra criatura frágil e sensível. A preferência pela mãe como vítima também está em que o filho já a conhece como dotada de inesgotável reserva de amor que a torna cativa dele, perdoando-o e... desculpando-o até o limite da própria sobrevivência. Aliás, há outras diferenças entre pai e mãe, umas decorrentes da natureza, outras da herança social. Num exemplo prosaico, o pai somente pode demonstrar amor e dedicação diretamente ao filho depois deste nascido porque antes este será inatingível na condição de hóspede do ventre materno, enquanto a mãe desde ainda embrião o filho sempre lhe estará se doando, ensejando-lhe usufruir dela, integralmente. Há pouco externei minha preocupação sobre esses dramas num artigo publicado pelo Estado de Minas, justificando-o com a certeza dele poder ser levado ao conhecimento de muitos a quem servirá a carapuça, fazendo dele um modesto tijolinho numa tentativa de reconstrução do caráter desses alienados. Buscando esse objetivo, comecei por procurar induzir cada um a quem se fizesse chegar o artigo a rememorar seu passado de dependência e de assistência materna que depois "agradeceu" mordendo o seio que o amamentou. Cada um devendo sentir-se reduzido à insignificância do mero espermatozóide que foi e que teria surgido e sumido não fosse transformado numa pequena semente no útero daquela que o acolheu dele se tornando mãe ao lhe dar condições de existir. Que acolheu a semente no calor da sua intimidade, onde desabrochou ocupando cada vez maior espaço para adquirir feições e crescer assim deformando-a estufando aquela barriga confortável, pesando-lhe e doendo-lhe o corpo nas mutações orgânicas e físicas inerentes à maternidade. Simultaneamente ela para melhor cuidar dessa outra vida sua dependente, privou-se do que não poderia comer nem tomar durante os nove longos meses da gestação e desdobrou seus esforços continuando a trabalhar para obter rendimentos e ajudar a manter também a casa. Tudo sem prejuízo de, sonhando com o dia da luz fazer tempo e dinheiro para o enxoval do agasalho desse filho enquanto criaturinha nascida nua, frágil e dependente dela que seguiu alimentando-o com o próprio leite não só enquanto recém-nascido, como na longa temporada dele necessitado - enquanto infante - daquela seiva somente saudável com a abstinência dela do que pudesse causar mal a ele. Num quadro de abnegação e de doação na medida em que ela teve de limitar suas atividades rentáveis e renunciar aos progressos profissionais na época. Procurei, naquele artigo popular, catequizar aqueles filhos ingratos lembrando essa saga materna tão complexa nos seus desdobramentos nos sustos dos engasgos com regurgitamento, o nunca mais acabar de limpar cocô e trocar fraldas, de passar noites insones com a choradeira das cólicas e da fome noturna, dos medos dos imprevistos, das febrinhas, da hora dolorosa do primeiro afastamento no deixá-lo ("tão pequenino, tão sozinho, o que será dele?!") na escolinha maternal. E da sucessão dos momentos em que o ensinou a se vestir, a orar, a fazer os deveres de casa dia-após-dia, a atravessar a rua, a temer os desconhecidos.
Não seria o pai de ser esquecido ou ver diminuído o seu amor pelo filho. Certamente houve o tempo em que passou de mero espectador do filho para dedicar-lhe, diretamente, assistência afetiva e material, insinuando-se e oferecendo-se como seu grande amigo. Talvez sem lograr êxito, já que o filho, afinal, deu no que deu. Ou, talvez porque houve o tempo inevitável, em que se intrometeu na criação uma poderosa e imprevisível parceira, a vida em sociedade. Agora mais insidiosa que nunca na que espelha uma civilização globalizada também no insano bombardeio de informações banalizadoras do mal e que, sorrateiras, invadem as famílias através do novo deus/lar, o televisor que absorve as atenções e padroniza comportamentos. Esse falso deus é quem mais se oferece com o disfarce de boa companhia pelos seus profetas noticiando, na verdade, o desrespeito e a violência, a depravação sexual e o descaminho social, as drogas e, como meio de adquiri-las, os conseqüentes roubos, chantagens e seqüestros. Estou convicto de esse terá sido o mais eficaz caldo de cultura em que cresceu aquele filho hoje ingrato e desnaturado depois de ter sido paparicado desde a concepção, naquele então mundo de amor e sonhos.
No ciclo da vida à proporção em que aquele menino se transformou em homem feito sua jovem mãe se tornou uma velha senhora. Aí, então, deveria imperar o natural legado social para as famílias bem estruturadas: o Mito da Cegonha, dos gregos e que tem como moral o impulso de quem recebeu ajuda enquanto dela necessitou depois manter-se grato protegendo e preferindo quem o ajudou e agora está carente. Minha formação jurídica me leva a confundir, fundindo, esse mito com o Princípio da Equidade, sintetizado no tratar desigualmente os desiguais ou seja, em cada fase do ciclo o fraco receberá mais do forte. A infração desses deveres e princípios, pelo que representa de cruel exceção, é que me vem espantando no preocupante crescente número dos filhos que, drogados ou pervertidos pelo mal banalizado, vêm maltratando aquelas suas velhas mães que os criaram.
Na verdade, os gregos ao mesmo tempo em que entendiam a cegonha como o animal que cuidava dos seus filhotes mas também das velhas companheiras já incapazes de obter alimento e proteção, viviam preocupados com uma eventual futura, e imprevisível, incapacidade pessoal para sua auto manutenção e conseqüente dependência da assistência dos filhos. Principalmente os de Atenas e de sua região de influência assombravam-se com o comportamento de bárbaros sacrificando seus membros incapazes para, com a morte deles, livrarem suas hordas do estorvo. Por isso que vieram a se valer do que observaram da cegonha para se proteger do medo do próprio futuro se seus filhos adotassem aquele exemplo dos bárbaros. Aqueles gregos somaram-se nos seus medos, cada qual para se garantir, mas a pretexto de preservar a sociedade e, através da alegoria daquela ave, criaram e impuseram como tabu social o Mito da Cegonha. Para apostrofar filhos ingratos me lembrei, naquele artigo, de também me valer desse mito que sintetiza aquele dever de quem, enquanto menor, para sobreviver dependeu de assistência, depois passar a proteger e preferir quem o socorreu naquele tempo e que incapaz, está carente dos recursos e do tratamento afetuoso que prestou e de que agora necessita para sobreviver com dignidade. Ocorre que os gregos, espertamente, como parte integrante do mito desdobraram aquele dever recíproco, dele fazendo decorrer outro, a ser cumprido por quem fosse vítima da ingratidão. A esse o mito impõe uma obrigatória sanção a ser efetivada contra quem não lhe retornou a ajuda recebida. Isso porque se não se previsse punição pela vítima ao ingrato, o mito deixaria de ser tabu protetor dos demais e para a salvaguarda da sociedade. Assim, além da possibilidade da deserdação (também prevista, no nosso direito) à vítima da ingratidão o mito impõe o dever de amaldiçoar o mal-agradecido com o "faskelos" (afasto-te de mim), um gesto público do braço estendido, com os cinco dedos abertos, dirigido contra o amaldiçoado, anunciando a transgressão da Regra, ritual que ainda sobrevive. Quem me conta muitos dos casos que ele conhece é o meu amigo Filippos Xemos, um homem culto. Um detalhe curioso: para os gregos, até hoje o paradigma de filho grato não é um patrício e sim o troiano Enéas, imortalizado por Homero na sua Ilíada e por Virgílio, na Eneida aviventando a lenda de que quando os gregos estavam na iminência de invadir Tróia foram alertados pelo oráculo para pouparem Enéas, por ordem dos deuses, de quem ele era querido. Procurado durante o morticínio, ele foi encontrado, recebeu garantia de vida e a autorização para levar consigo o bem que considerasse o mais precioso. Enéas adentrou a casa e saiu carregando nas costas seu pai senil, cego e entrevado. Admirados com tanta dedicação filial, os guerreiros acolheram o velho e premiaram Enéas com a totalidade de seus bens. Quanto ao faskelos que para os gregos vale como maldição simbólica contra quem não restitui a assistência afetiva e material, nem o amor recebidos, ente nós - se essa ingratidão de filho incorporar qualquer tipo de violência - deverá se formalizar no gesto da denúncia policial/judicial. Não como se a vítima da ingratidão devesse com isso aplicar a Lei de Talião, olho por olho, dente por dente. Não. Seu gesto teria mais a finalidade da restituição da graça e do amor como santo remédio para uma correição comportamental do filho, in oportuno tempore, decorrente de outro dever moral/social, o da paternidade responsável, bem como para exercer o direito de defesa da dignidade pessoal e da própria vida, conforme o caso.
Ainda acacianamente, erra-se por ação e... por omissão, e o caminho do inferno talvez esteja calçado de mais pretensas virtudes que de pecados mortais. Estou tão enfático nesse ponto por me sentir provocado pela sistemática recusa de mães que não admitem essa denúncia como aquele poder-dever delas. Ora, porque realmente são mais sensíveis e frágeis, assim vítimas preferidas dos filhos problemáticos que as agridem moral e/ou fisicamente confiados no amor desmedido delas, são por mim alertadas sobre sua recusa por amor ou por pudor ser a antítese da necessária correição para a, aí sim, amorosa recuperação deles. Aqueles agressores confiam, afinal, no confiável silêncio público delas que se aceitam como verdadeiras reféns de seqüestros domésticos. Essas não têm olhos para enxergar que aquele seu silêncio não corresponde a uma devotada abnegação e sim a uma cumplicidade conivente e incentivadora daqueles seus filhos. Esses, não denunciados para serem corrigidos por quem detenha autoridade que elas já perderam, rolarão definitivamente pela ladeira do crime e por eles serão chorados como indivíduos então nocivos não só à sociedade como a elas próprias que não assumiram a parte corretiva da maternidade responsável. As poucas que exercem seu poder/dever de denunciar, apenas o fazem quando a ingratidão deles chega ao clímax, com a expulsão delas da própria casa, com surras humilhantes ou por sofrerem sucessivos furtos que as deixaram sem nada por seus filhos desinsofridos para quitarem traficantes de drogas. Não tenho dúvidas em diagnosticar como câncer social essa especial violência ausente do noticiário e crescente até nas classes mais abastadas supostamente imunes a ela e que têm filhos sob metástase desse câncer contaminado pelas más companhias e drogas, agressivos pela banalização do mal. Reitero que, para alertá-las será sempre válido aquele Mito da Cegonha no seu corolário punitivo dessa ingratidão de um filho pela denúncia dele como transgressor da Regra, nesse sentido gesticulando-lhe com o fastelos. Aproveito para destacar que o uso inadequado vulgarizou o termo gratidão que urge seja revalorizado na origem como restrito a quem se deve, sob qualquer forma, a vida; aos demais benfeitores deve-se reconhecimento.
O caso seguinte, há pouco objeto de consulta, exemplifica milhares subjacentes ao noticiário e justifica minha intenção. Uma filha única, com 15 anos de idade, órfã de pai desde os 4, matriculada nas melhores escolas, de crescimento físico precoce, mal influenciada aos onze rebelou-se contra o estudo e a disciplina, assumiu de vez suas más companhias e as drogas hoje onipresentes. Numa (de)gradação passou da desobediência ao desacato, à agressão à mãe, ao furto do dinheiro que descobria e dos eletrodomésticos. Depenava a mãe e a casa para pagar traficantes. Nisso, desde os 13 anos, corpo de mulher, tornou-se amante de um desqualificado, de 30 (meu xará, Freud, explica). Fez da mãe aquela refém de continuado seqüestro doméstico: cujo resgate é o preço do sustento do vício. Já exaurida física, psíquica, moral e financeiramente, malgré tout passou a ser aterrorizada por traficantes adentrando sua casa exigindo - sob ameaças de morte - pagamento das dívidas da filha que continua lhe batendo. A essa altura da narrativa da consulente, fiquei ainda mais chocado ao constatar que, mesmo desesperada, acuada e doente pela somatização da ingratidão dessa filha e do terror dos bandidos, essa mãe, afinal, se recusava a provocar solução policial/judicial. Está preferindo a absurda alternativa de vender os seus imóveis para ter como fugir e desaparecer do acesso dessa corja.
A multiplicação dos casos que chegam ao meu conhecimento profissional - sem que seja autorizado a agir - ao mesmo tempo que me deixa revoltado contra tanta ingratidão me deixa com sensação de impotência por saber que cada caso é como a pequena bola de neve que começa a rolar e, não tendo quem a freie será avalanche em breve. Lembro que de pais preocupados com maior riqueza e despreocupados com filho, não torcendo desde pequeno o pepino supondo que ele evoluirá naturalmente como ótimo filho e cidadão, nascem bandidos de gravata. Do tipo do Mauricinho B., recentemente famoso na mídia e que, filhinho mimado, escandalizou a sociedade ao ser identificado pela polícia como o chefe de uma gang autora de espetaculares assaltos a prédios inteiros de apartamentos, para fazer dinheiro para drogas, enquanto os pais se ocupavam de freqüentar o society. Li que a mãe com quem vivia, escondeu do pai separado as surras que levava de Mauricinho, além de três detenções policiais por porte de drogas; e que o pai chegou a ser apunhalado no peito por asseclas do filho ao ir admoestá-lo para abandonar o vício. Foi apunhalado na frente dele que não esboçou qualquer defesa do pai que acabou socorrido por terceiros e internado numa UTI, em coma por sete dias. Esses pais, ausentes na formação e inertes na correição desse filho, pecaram contra ele definitivamente marginalizado e contra a sociedade lesionada pelo ladrão.
Por isso que provoco para a Razão essas mães que confundem amor maternal e perdão incondicional com uma perigosa cumplicidade. Mães que, como a do exemplo que narrei, comparecem no meu escritório - como no de outros familiaristas - pretextando consulta que resulte numa solução judicial que as poupe do seu sofrimento nas mãos dos seus filhos pervertidos pelas más companhias e pelas drogas. Mães que, no entanto, como se extrovertessem seus dramas no divã de psicanalista evidenciam desejar apenas quem as ouça repelindo qualquer sugestão jurídica. A saga da sua insuspeitada tragédia, com o detalhamento das ruindades com que lhes agradecem o muito amor, é contada com lágrimas escorrendo-lhes faces abaixo, mater dolorosas. Ao final, agradecem mas dispensam as orientações, saindo arrastando sua sina, deixando para trás um advogado solidário e frustrado.
* Advogado especialista em Direito de Família
Texto fornecido por Cemir Diniz Campêlo
"Pais e Filhos não querem visitas, querem convivência - Guarda Compartilhada"
Chegaria a ser acaciana, não fosse indispensável como intróito, a observação de que em qualquer Estado de Direito a maioria vive, e convive, sob um ordenamento legal e na conformidade da herança genética e social legada pelos seus antepassados desde os tempos mais remotos em que seus limites eram os tabus e seu respeito era a um direito Natural. A síntese fundamental desse necessário procedimento pessoal auto-policiado para atender os limites legais estará no atendimento do apelo - ainda Natural - para somar-se, enquanto indivíduo membro do núcleo primário da sociedade e que é a família, no amplo contexto da própria preservação e sobrevivência da espécie. Tanto melhor para esse indivíduo se o desenrolar da sua vida ocorrer numa convivência familiar permanentemente solidária em que os adultos fortes, acodem os mais frágeis, os menores e os demais incapazes. Nesta solidariedade estará imanente a gratidão pelo anteriormente recebido. Importará no desprendimento de cada um para o recíproco e permanente suprimento das necessidades dos familiares que se alternarão na variação cíclica do tempo que faz nascer, viver, envelhecer e morrer. Num transcurso em que tudo se altera: as idades, as circunstâncias, e as capacidades. Nesse ritmo os indivíduos, se normais, seguirão provendo suas carências cognitivas, afetivas e sexuais. Ao tornarem-se pais e mães aquele apelo natural os compelirá a trabalhar para a segurança da família que constituíram e para um melhor futuro para os seus filhos. Mas, todos conhecemos exceções que nos chocam, casos de pais desnaturados. Alguns, espertos na própria maldade, dão uma de godelo, pássaro que bota seu ovo no ninho do tico-tico que o choca e cria sozinho. Outros cuidam do seu filho apenas enquanto infante e depois somem da vida dele. E, noutras variações, há pais que depois de se separarem das mães abandonam também os filhos. Todos caracterizando sua violação do dever moral/natural de lhes prestar assistência afetiva, material e escolar. E, porque antisocial, esse comportamento também tem previsão legal de crime e de infração civil do dever de alimentar e assim sujeito à uma correição que resultará na quantificação dos alimentos devidos e no constrangimento judicial para o seu pagamento até sob pena de prisão.
No entanto, o cerne do nosso assunto está no surpreendente crescimento dos casos do que seria o outro lado da moeda desse comportamento lamentável mas do cotidiano dos profissionais do direito. São os casos que, de início, rotulei como verdadeiro fenômeno social emergente: os da ingratidão ativa de filhos, tão pior quanto materializada na violência contra pais, com ênfase contra as mães, mais oportunas como vítimas por sua menor capacidade de reação. Com horror enquanto ser humano, são dramas que tenho vivenciado em consultas como resultado de uma absurda e crescente violência filial. A conjugal, de marido x mulher na baixaria das agressões físicas até com tragédias resultando em assassinatos e suicídios, e a violência paterna, de pervertidos marcando filhos indefesos no corpo e na alma com surras covardes, são uma cruel realidade que a mídia se encarregou de popularizar e para a qual nós buscamos a previsível prestação jurisdicional. A violência que qualifiquei de especial é subjacente àquela dos noticiários, é a que não tem sido exposta porque o pudor e o amor imortal de genitores bondosos silenciam as ocorrências. É a que vem sendo praticada, então impunemente, por muitos filhos e sob inimagináveis formas físicas, psíquicas e morais. Nessas situações, não raro o antigo amor filial nascido da gratidão se transforma não só em ódio como em agressões malnascidas nos desvãos da banalização do mal embutido na informação deletéria. Destaque-se que, na prática, a agressividade contra o pai é limitada, quando não inibida, pela maior força física dele, o que inocorre quando contra a mãe, com agressões sempre consumadas e tão mais revoltantes quanto sejas também covardes porque contra criatura frágil e sensível. A preferência pela mãe como vítima também está em que o filho já a conhece como dotada de inesgotável reserva de amor que a torna cativa dele, perdoando-o e... desculpando-o até o limite da própria sobrevivência. Aliás, há outras diferenças entre pai e mãe, umas decorrentes da natureza, outras da herança social. Num exemplo prosaico, o pai somente pode demonstrar amor e dedicação diretamente ao filho depois deste nascido porque antes este será inatingível na condição de hóspede do ventre materno, enquanto a mãe desde ainda embrião o filho sempre lhe estará se doando, ensejando-lhe usufruir dela, integralmente. Há pouco externei minha preocupação sobre esses dramas num artigo publicado pelo Estado de Minas, justificando-o com a certeza dele poder ser levado ao conhecimento de muitos a quem servirá a carapuça, fazendo dele um modesto tijolinho numa tentativa de reconstrução do caráter desses alienados. Buscando esse objetivo, comecei por procurar induzir cada um a quem se fizesse chegar o artigo a rememorar seu passado de dependência e de assistência materna que depois "agradeceu" mordendo o seio que o amamentou. Cada um devendo sentir-se reduzido à insignificância do mero espermatozóide que foi e que teria surgido e sumido não fosse transformado numa pequena semente no útero daquela que o acolheu dele se tornando mãe ao lhe dar condições de existir. Que acolheu a semente no calor da sua intimidade, onde desabrochou ocupando cada vez maior espaço para adquirir feições e crescer assim deformando-a estufando aquela barriga confortável, pesando-lhe e doendo-lhe o corpo nas mutações orgânicas e físicas inerentes à maternidade. Simultaneamente ela para melhor cuidar dessa outra vida sua dependente, privou-se do que não poderia comer nem tomar durante os nove longos meses da gestação e desdobrou seus esforços continuando a trabalhar para obter rendimentos e ajudar a manter também a casa. Tudo sem prejuízo de, sonhando com o dia da luz fazer tempo e dinheiro para o enxoval do agasalho desse filho enquanto criaturinha nascida nua, frágil e dependente dela que seguiu alimentando-o com o próprio leite não só enquanto recém-nascido, como na longa temporada dele necessitado - enquanto infante - daquela seiva somente saudável com a abstinência dela do que pudesse causar mal a ele. Num quadro de abnegação e de doação na medida em que ela teve de limitar suas atividades rentáveis e renunciar aos progressos profissionais na época. Procurei, naquele artigo popular, catequizar aqueles filhos ingratos lembrando essa saga materna tão complexa nos seus desdobramentos nos sustos dos engasgos com regurgitamento, o nunca mais acabar de limpar cocô e trocar fraldas, de passar noites insones com a choradeira das cólicas e da fome noturna, dos medos dos imprevistos, das febrinhas, da hora dolorosa do primeiro afastamento no deixá-lo ("tão pequenino, tão sozinho, o que será dele?!") na escolinha maternal. E da sucessão dos momentos em que o ensinou a se vestir, a orar, a fazer os deveres de casa dia-após-dia, a atravessar a rua, a temer os desconhecidos.
Não seria o pai de ser esquecido ou ver diminuído o seu amor pelo filho. Certamente houve o tempo em que passou de mero espectador do filho para dedicar-lhe, diretamente, assistência afetiva e material, insinuando-se e oferecendo-se como seu grande amigo. Talvez sem lograr êxito, já que o filho, afinal, deu no que deu. Ou, talvez porque houve o tempo inevitável, em que se intrometeu na criação uma poderosa e imprevisível parceira, a vida em sociedade. Agora mais insidiosa que nunca na que espelha uma civilização globalizada também no insano bombardeio de informações banalizadoras do mal e que, sorrateiras, invadem as famílias através do novo deus/lar, o televisor que absorve as atenções e padroniza comportamentos. Esse falso deus é quem mais se oferece com o disfarce de boa companhia pelos seus profetas noticiando, na verdade, o desrespeito e a violência, a depravação sexual e o descaminho social, as drogas e, como meio de adquiri-las, os conseqüentes roubos, chantagens e seqüestros. Estou convicto de esse terá sido o mais eficaz caldo de cultura em que cresceu aquele filho hoje ingrato e desnaturado depois de ter sido paparicado desde a concepção, naquele então mundo de amor e sonhos.
No ciclo da vida à proporção em que aquele menino se transformou em homem feito sua jovem mãe se tornou uma velha senhora. Aí, então, deveria imperar o natural legado social para as famílias bem estruturadas: o Mito da Cegonha, dos gregos e que tem como moral o impulso de quem recebeu ajuda enquanto dela necessitou depois manter-se grato protegendo e preferindo quem o ajudou e agora está carente. Minha formação jurídica me leva a confundir, fundindo, esse mito com o Princípio da Equidade, sintetizado no tratar desigualmente os desiguais ou seja, em cada fase do ciclo o fraco receberá mais do forte. A infração desses deveres e princípios, pelo que representa de cruel exceção, é que me vem espantando no preocupante crescente número dos filhos que, drogados ou pervertidos pelo mal banalizado, vêm maltratando aquelas suas velhas mães que os criaram.
Na verdade, os gregos ao mesmo tempo em que entendiam a cegonha como o animal que cuidava dos seus filhotes mas também das velhas companheiras já incapazes de obter alimento e proteção, viviam preocupados com uma eventual futura, e imprevisível, incapacidade pessoal para sua auto manutenção e conseqüente dependência da assistência dos filhos. Principalmente os de Atenas e de sua região de influência assombravam-se com o comportamento de bárbaros sacrificando seus membros incapazes para, com a morte deles, livrarem suas hordas do estorvo. Por isso que vieram a se valer do que observaram da cegonha para se proteger do medo do próprio futuro se seus filhos adotassem aquele exemplo dos bárbaros. Aqueles gregos somaram-se nos seus medos, cada qual para se garantir, mas a pretexto de preservar a sociedade e, através da alegoria daquela ave, criaram e impuseram como tabu social o Mito da Cegonha. Para apostrofar filhos ingratos me lembrei, naquele artigo, de também me valer desse mito que sintetiza aquele dever de quem, enquanto menor, para sobreviver dependeu de assistência, depois passar a proteger e preferir quem o socorreu naquele tempo e que incapaz, está carente dos recursos e do tratamento afetuoso que prestou e de que agora necessita para sobreviver com dignidade. Ocorre que os gregos, espertamente, como parte integrante do mito desdobraram aquele dever recíproco, dele fazendo decorrer outro, a ser cumprido por quem fosse vítima da ingratidão. A esse o mito impõe uma obrigatória sanção a ser efetivada contra quem não lhe retornou a ajuda recebida. Isso porque se não se previsse punição pela vítima ao ingrato, o mito deixaria de ser tabu protetor dos demais e para a salvaguarda da sociedade. Assim, além da possibilidade da deserdação (também prevista, no nosso direito) à vítima da ingratidão o mito impõe o dever de amaldiçoar o mal-agradecido com o "faskelos" (afasto-te de mim), um gesto público do braço estendido, com os cinco dedos abertos, dirigido contra o amaldiçoado, anunciando a transgressão da Regra, ritual que ainda sobrevive. Quem me conta muitos dos casos que ele conhece é o meu amigo Filippos Xemos, um homem culto. Um detalhe curioso: para os gregos, até hoje o paradigma de filho grato não é um patrício e sim o troiano Enéas, imortalizado por Homero na sua Ilíada e por Virgílio, na Eneida aviventando a lenda de que quando os gregos estavam na iminência de invadir Tróia foram alertados pelo oráculo para pouparem Enéas, por ordem dos deuses, de quem ele era querido. Procurado durante o morticínio, ele foi encontrado, recebeu garantia de vida e a autorização para levar consigo o bem que considerasse o mais precioso. Enéas adentrou a casa e saiu carregando nas costas seu pai senil, cego e entrevado. Admirados com tanta dedicação filial, os guerreiros acolheram o velho e premiaram Enéas com a totalidade de seus bens. Quanto ao faskelos que para os gregos vale como maldição simbólica contra quem não restitui a assistência afetiva e material, nem o amor recebidos, ente nós - se essa ingratidão de filho incorporar qualquer tipo de violência - deverá se formalizar no gesto da denúncia policial/judicial. Não como se a vítima da ingratidão devesse com isso aplicar a Lei de Talião, olho por olho, dente por dente. Não. Seu gesto teria mais a finalidade da restituição da graça e do amor como santo remédio para uma correição comportamental do filho, in oportuno tempore, decorrente de outro dever moral/social, o da paternidade responsável, bem como para exercer o direito de defesa da dignidade pessoal e da própria vida, conforme o caso.
Ainda acacianamente, erra-se por ação e... por omissão, e o caminho do inferno talvez esteja calçado de mais pretensas virtudes que de pecados mortais. Estou tão enfático nesse ponto por me sentir provocado pela sistemática recusa de mães que não admitem essa denúncia como aquele poder-dever delas. Ora, porque realmente são mais sensíveis e frágeis, assim vítimas preferidas dos filhos problemáticos que as agridem moral e/ou fisicamente confiados no amor desmedido delas, são por mim alertadas sobre sua recusa por amor ou por pudor ser a antítese da necessária correição para a, aí sim, amorosa recuperação deles. Aqueles agressores confiam, afinal, no confiável silêncio público delas que se aceitam como verdadeiras reféns de seqüestros domésticos. Essas não têm olhos para enxergar que aquele seu silêncio não corresponde a uma devotada abnegação e sim a uma cumplicidade conivente e incentivadora daqueles seus filhos. Esses, não denunciados para serem corrigidos por quem detenha autoridade que elas já perderam, rolarão definitivamente pela ladeira do crime e por eles serão chorados como indivíduos então nocivos não só à sociedade como a elas próprias que não assumiram a parte corretiva da maternidade responsável. As poucas que exercem seu poder/dever de denunciar, apenas o fazem quando a ingratidão deles chega ao clímax, com a expulsão delas da própria casa, com surras humilhantes ou por sofrerem sucessivos furtos que as deixaram sem nada por seus filhos desinsofridos para quitarem traficantes de drogas. Não tenho dúvidas em diagnosticar como câncer social essa especial violência ausente do noticiário e crescente até nas classes mais abastadas supostamente imunes a ela e que têm filhos sob metástase desse câncer contaminado pelas más companhias e drogas, agressivos pela banalização do mal. Reitero que, para alertá-las será sempre válido aquele Mito da Cegonha no seu corolário punitivo dessa ingratidão de um filho pela denúncia dele como transgressor da Regra, nesse sentido gesticulando-lhe com o fastelos. Aproveito para destacar que o uso inadequado vulgarizou o termo gratidão que urge seja revalorizado na origem como restrito a quem se deve, sob qualquer forma, a vida; aos demais benfeitores deve-se reconhecimento.
O caso seguinte, há pouco objeto de consulta, exemplifica milhares subjacentes ao noticiário e justifica minha intenção. Uma filha única, com 15 anos de idade, órfã de pai desde os 4, matriculada nas melhores escolas, de crescimento físico precoce, mal influenciada aos onze rebelou-se contra o estudo e a disciplina, assumiu de vez suas más companhias e as drogas hoje onipresentes. Numa (de)gradação passou da desobediência ao desacato, à agressão à mãe, ao furto do dinheiro que descobria e dos eletrodomésticos. Depenava a mãe e a casa para pagar traficantes. Nisso, desde os 13 anos, corpo de mulher, tornou-se amante de um desqualificado, de 30 (meu xará, Freud, explica). Fez da mãe aquela refém de continuado seqüestro doméstico: cujo resgate é o preço do sustento do vício. Já exaurida física, psíquica, moral e financeiramente, malgré tout passou a ser aterrorizada por traficantes adentrando sua casa exigindo - sob ameaças de morte - pagamento das dívidas da filha que continua lhe batendo. A essa altura da narrativa da consulente, fiquei ainda mais chocado ao constatar que, mesmo desesperada, acuada e doente pela somatização da ingratidão dessa filha e do terror dos bandidos, essa mãe, afinal, se recusava a provocar solução policial/judicial. Está preferindo a absurda alternativa de vender os seus imóveis para ter como fugir e desaparecer do acesso dessa corja.
A multiplicação dos casos que chegam ao meu conhecimento profissional - sem que seja autorizado a agir - ao mesmo tempo que me deixa revoltado contra tanta ingratidão me deixa com sensação de impotência por saber que cada caso é como a pequena bola de neve que começa a rolar e, não tendo quem a freie será avalanche em breve. Lembro que de pais preocupados com maior riqueza e despreocupados com filho, não torcendo desde pequeno o pepino supondo que ele evoluirá naturalmente como ótimo filho e cidadão, nascem bandidos de gravata. Do tipo do Mauricinho B., recentemente famoso na mídia e que, filhinho mimado, escandalizou a sociedade ao ser identificado pela polícia como o chefe de uma gang autora de espetaculares assaltos a prédios inteiros de apartamentos, para fazer dinheiro para drogas, enquanto os pais se ocupavam de freqüentar o society. Li que a mãe com quem vivia, escondeu do pai separado as surras que levava de Mauricinho, além de três detenções policiais por porte de drogas; e que o pai chegou a ser apunhalado no peito por asseclas do filho ao ir admoestá-lo para abandonar o vício. Foi apunhalado na frente dele que não esboçou qualquer defesa do pai que acabou socorrido por terceiros e internado numa UTI, em coma por sete dias. Esses pais, ausentes na formação e inertes na correição desse filho, pecaram contra ele definitivamente marginalizado e contra a sociedade lesionada pelo ladrão.
Por isso que provoco para a Razão essas mães que confundem amor maternal e perdão incondicional com uma perigosa cumplicidade. Mães que, como a do exemplo que narrei, comparecem no meu escritório - como no de outros familiaristas - pretextando consulta que resulte numa solução judicial que as poupe do seu sofrimento nas mãos dos seus filhos pervertidos pelas más companhias e pelas drogas. Mães que, no entanto, como se extrovertessem seus dramas no divã de psicanalista evidenciam desejar apenas quem as ouça repelindo qualquer sugestão jurídica. A saga da sua insuspeitada tragédia, com o detalhamento das ruindades com que lhes agradecem o muito amor, é contada com lágrimas escorrendo-lhes faces abaixo, mater dolorosas. Ao final, agradecem mas dispensam as orientações, saindo arrastando sua sina, deixando para trás um advogado solidário e frustrado.
* Advogado especialista em Direito de Família
Texto fornecido por Cemir Diniz Campêlo
"Pais e Filhos não querem visitas, querem convivência - Guarda Compartilhada"