GUARDA COMPARTILHADA: UM DILEMA MORAL
Um dos aspectos mais fascinantes da sociedade é a capacidade de evoluir a partir de fundamentos básicos que se consolidam entre crenças, tradições, usos, costumes ao longo do tempo. Este conjunto de conceitos passados de geração a geração seja no âmbito familiar seja através dos sistemas de educação, de culto religioso ou simplesmente nas relações interpessoais formam a espinha dorsal da sociedade, permeando as diversas opções e caminhos que percorremos. Estas escolhas “morais” irrigam as instituições que fazem parte do Estado democrático e afetam o que os economistas chamam de “custos de transação”. Muitas vezes os custos provocados pelo “moralismo” são impostos a nós por terceiros que se beneficiam sem, no entanto arcar com o seu ônus; ou mesmo, dividem este custo com a sociedade, caracterizando aquilo que em microeconomia chamamos de uma “externalidade moral”.
Para que o leitor compreenda melhor o conceito, tomarei como exemplo o aborto - caso clássico de “externalidade moral”. Embora tecnicamente aceito pela maioria das sociedades dos países ocidentais desenvolvidos, ainda enfrenta restrições e obstáculos legais nestes mesmos sistemas jurídicos, em parte devido ao julgamento moral contrário a sua prática advindo de uma minoria, incluindo parte dos que possuem o poder de legislar. Neste caso, uma pequena proporção da sociedade que se “ofende” com a prática do aborto, impõe a sua restrição à mulher que então será obrigada a: a) conceber um(a) filho(a) indesejado ou b) praticar o aborto clandestino. Não é necessário ir muito além à análise para entender o conceito de externalidade moral. A minoria contrária a sua adoção por princípios morais, beneficia-se de sua proibição, sendo que o ônus disto refletido nos custos incrementais de a) de saúde pública em face da prática de aborto clandestino e b) de combate a criminalidade em face ao nascimento de filhos indesejáveis, são redistribuídos a toda sociedade de forma indiscriminada.
O mesmo raciocínio aplica-se a outras questões polêmicas enfrentadas pelo poder judiciário como racismo, eutanásia, pesquisa com células-tronco, transplante de órgãos e mais recentemente a guarda compartilhada. Mais especificamente em relação à pesquisa com célula-tronco, o Supremo Tribunal Federal permitiu de forma inédita – através de audiência pública, que todos os interessados e com expertise na área se manifestassem de forma a melhorar o conhecimento e o juízo que os ministros tinham sobre o tema, inclusive eventual juízo moral. O resultado deste processo histórico é que a sociedade Brasileira avançou algumas décadas com a decisão favorável do STF no sentido de permitir as pesquisas com célula-tronco no Brasil, e ao mesmo tempo respeitou e ouviu as mais diversas correntes de pensamento sobre o tema. O ineditismo não veio apenas da decisão em si, mas do processo que visou explicitar o custo social da “externalidade moral” confrontando mito e empirismo com estatísticas científicas.
A guarda compartilhada é um tema que desperta questionamentos tanto objetivos – em sua maioria relacionados a sua eficácia psico-social, quanto subjetivos, relacionados a tradição e moral. Existe hoje uma clara dificuldade dos juizes de 1ª instância e dos tribunais em separar estas duas fontes de dúvidas. O primeiro e maior obstáculo à formulação de um juízo imparcial da matéria reside na própria natureza do processo de separação judicial que permite a todos os seus agentes – juízes, desembargadores, procuradores, ministério público, vincular todos os temas relacionados a separação, guarda, alimentos e arrolamento de bens, a partir da lógica de quem ajuizou a ação de separação, sobrando pouco espaço para o contraditório especialmente no caso de litígio.
Não há dúvida de que a mistura de temas complexos e que seguem ritos distintos, favorece e muito o julgamento moral e consequentemente a preferência pela tradição em prol da celeridade processual. Sobra espaço para aqueles que atuam em nome do Estado e que se “ofendem” com a simples idéia de que um genitor tenha o direito de compartilhar a guarda dos filhos, utilizem argumentos de embasamento técnico-científico duvidosos para manter o status-quo do regime monoparental.
É fato de que o perfil tradicionalista de significativa parte daqueles que estão envolvidos em um processo de separação tende a simplificar o processo de análise de um pedido de guarda compartilhada, sendo que os peritos indicados pelos juízes nem sempre dispõem de tempo adequado para se aprofundar nos casos mais complexos. O viés pró guarda monoparental e a omissão de alguns profissionais do ramo cria incentivos perversos que favorecem a parte que se recusa a ceder ou a compartilhar a guarda, muitas vezes abrindo a possibilidade de prática explícita de chantagem e de utilização da criança como escudo, dificilmente percebida por um juiz e muito menos pelo ministério público.
A maior evidência de que em alguns casos a Vara da Família pode se transformar em “Vara da Mulher” é que os direitos da criança afetados pela separação são observados puramente sob a ótica da genitora e vinculados à ação de alimentos. O MP que deveria defender os interesses do menor sob todos os aspectos, muitas vezes sequer teve o contato com seu “cliente” para entender o ambiente em que ele vive e a pressão psicológica provocada pela ausência paterna. Neste caso a máxima – “o que não está nos autos não existe” deveria ser acrescida de uma observação mais próxima do menor nos casos de litígio, como fazem promotores e juízes na Vara da Infância e da Juventude. Infelizmente em grande parte dos casos na Vara de Família, os promotores preferem se fiar em laudos feitos as pressas com qualidade duvidosa e metodologia anacrônica proferidos por peritos que mal dispõem de tempo para analisar os processos com a devida profundidade.
Na falta de produção científica de qualidade para subsidiar o poder judiciário, vale o empirismo recheado de julgamento moral. A Síndrome de Alienação Parental, de conseqüências graves para desenvolvimento da criança é ainda tratada com descaso no meio jurídico que encara a guarda como uma escolha moral, com ganhadores e perdedores. As condições exigidas por alguns juízes e peritos para a aceitação da guarda compartilhada – que, diga-se de passagem, é prevista em lei, chegam a ser tão absurdas que transformam o compartilhamento em regime de exceção ao idealizar o “ambiente perfeito” para uma criança em um processo de separação. Este “ambiente” criado pelos peritos talvez não seja possível ou aplicável nem mesmo em muitas famílias que ainda se encontram casadas. Considerar – por exemplo, a existência de litígio como barreira à adoção da guarda compartilhada incentiva um comportamento “anti-acordo” ou “anti-mediação” por parte daquele que detém a guarda. Seguramente um número razoável de litígios poderiam ser evitados se o judiciário coibisse este tipo de comportamento por parte das genitoras (em sua maioria) e de seus advogados. A simples mudança de mentalidade por parte de alguns juízes que colocam o bem estar da criança em primeiro lugar em uma separação, tem o poder de desestimular o litigante de má-fé pois ao compartilhar a guarda, os genitores são levados a negociar em bases eqüitativas com foco nos filhos.
Outras sociedades entenderam que a única forma de reduzir o incentivo ao litígio – cujo foco normalmente é dinheiro, ou pelo menos não permitir que este contamine as crianças, é inverter a lógica da guarda. Em outras palavras, o compartilhamento deveria ser a regra e não a exceção, sendo que caberia a parte contrária a tese convencer juiz e MP de que a outra parte é incapaz de compartilhar. Apesar de tanto a Constituição Federal quanto a Lei da Guarda Compartilhada criarem espaço para a adoção deste modelo, ainda prevalece no país o simplismo e o julgamento moral, cabendo a parte que ajuíza o pedido de compartilhamento justificar este pedido aos peritos judiciais, ou seja, ocorre hoje uma completa e descabida inversão de valores.
O raciocínio é simples, porém a adoção desta prática significaria minimizar o dilema moral e os custos sociais provocados pelo mesmo. Talvez esta mudança só ocorra quando os processos de guarda compartilhada começarem a inundar os tribunais superiores. No caso das pesquisas com células-tronco o STF já mostrou à sociedade qual é o melhor remédio contra a externalidade moral: transparência e profundidade.
Samuel Oliveira
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Para que o leitor compreenda melhor o conceito, tomarei como exemplo o aborto - caso clássico de “externalidade moral”. Embora tecnicamente aceito pela maioria das sociedades dos países ocidentais desenvolvidos, ainda enfrenta restrições e obstáculos legais nestes mesmos sistemas jurídicos, em parte devido ao julgamento moral contrário a sua prática advindo de uma minoria, incluindo parte dos que possuem o poder de legislar. Neste caso, uma pequena proporção da sociedade que se “ofende” com a prática do aborto, impõe a sua restrição à mulher que então será obrigada a: a) conceber um(a) filho(a) indesejado ou b) praticar o aborto clandestino. Não é necessário ir muito além à análise para entender o conceito de externalidade moral. A minoria contrária a sua adoção por princípios morais, beneficia-se de sua proibição, sendo que o ônus disto refletido nos custos incrementais de a) de saúde pública em face da prática de aborto clandestino e b) de combate a criminalidade em face ao nascimento de filhos indesejáveis, são redistribuídos a toda sociedade de forma indiscriminada.
O mesmo raciocínio aplica-se a outras questões polêmicas enfrentadas pelo poder judiciário como racismo, eutanásia, pesquisa com células-tronco, transplante de órgãos e mais recentemente a guarda compartilhada. Mais especificamente em relação à pesquisa com célula-tronco, o Supremo Tribunal Federal permitiu de forma inédita – através de audiência pública, que todos os interessados e com expertise na área se manifestassem de forma a melhorar o conhecimento e o juízo que os ministros tinham sobre o tema, inclusive eventual juízo moral. O resultado deste processo histórico é que a sociedade Brasileira avançou algumas décadas com a decisão favorável do STF no sentido de permitir as pesquisas com célula-tronco no Brasil, e ao mesmo tempo respeitou e ouviu as mais diversas correntes de pensamento sobre o tema. O ineditismo não veio apenas da decisão em si, mas do processo que visou explicitar o custo social da “externalidade moral” confrontando mito e empirismo com estatísticas científicas.
A guarda compartilhada é um tema que desperta questionamentos tanto objetivos – em sua maioria relacionados a sua eficácia psico-social, quanto subjetivos, relacionados a tradição e moral. Existe hoje uma clara dificuldade dos juizes de 1ª instância e dos tribunais em separar estas duas fontes de dúvidas. O primeiro e maior obstáculo à formulação de um juízo imparcial da matéria reside na própria natureza do processo de separação judicial que permite a todos os seus agentes – juízes, desembargadores, procuradores, ministério público, vincular todos os temas relacionados a separação, guarda, alimentos e arrolamento de bens, a partir da lógica de quem ajuizou a ação de separação, sobrando pouco espaço para o contraditório especialmente no caso de litígio.
Não há dúvida de que a mistura de temas complexos e que seguem ritos distintos, favorece e muito o julgamento moral e consequentemente a preferência pela tradição em prol da celeridade processual. Sobra espaço para aqueles que atuam em nome do Estado e que se “ofendem” com a simples idéia de que um genitor tenha o direito de compartilhar a guarda dos filhos, utilizem argumentos de embasamento técnico-científico duvidosos para manter o status-quo do regime monoparental.
É fato de que o perfil tradicionalista de significativa parte daqueles que estão envolvidos em um processo de separação tende a simplificar o processo de análise de um pedido de guarda compartilhada, sendo que os peritos indicados pelos juízes nem sempre dispõem de tempo adequado para se aprofundar nos casos mais complexos. O viés pró guarda monoparental e a omissão de alguns profissionais do ramo cria incentivos perversos que favorecem a parte que se recusa a ceder ou a compartilhar a guarda, muitas vezes abrindo a possibilidade de prática explícita de chantagem e de utilização da criança como escudo, dificilmente percebida por um juiz e muito menos pelo ministério público.
A maior evidência de que em alguns casos a Vara da Família pode se transformar em “Vara da Mulher” é que os direitos da criança afetados pela separação são observados puramente sob a ótica da genitora e vinculados à ação de alimentos. O MP que deveria defender os interesses do menor sob todos os aspectos, muitas vezes sequer teve o contato com seu “cliente” para entender o ambiente em que ele vive e a pressão psicológica provocada pela ausência paterna. Neste caso a máxima – “o que não está nos autos não existe” deveria ser acrescida de uma observação mais próxima do menor nos casos de litígio, como fazem promotores e juízes na Vara da Infância e da Juventude. Infelizmente em grande parte dos casos na Vara de Família, os promotores preferem se fiar em laudos feitos as pressas com qualidade duvidosa e metodologia anacrônica proferidos por peritos que mal dispõem de tempo para analisar os processos com a devida profundidade.
Na falta de produção científica de qualidade para subsidiar o poder judiciário, vale o empirismo recheado de julgamento moral. A Síndrome de Alienação Parental, de conseqüências graves para desenvolvimento da criança é ainda tratada com descaso no meio jurídico que encara a guarda como uma escolha moral, com ganhadores e perdedores. As condições exigidas por alguns juízes e peritos para a aceitação da guarda compartilhada – que, diga-se de passagem, é prevista em lei, chegam a ser tão absurdas que transformam o compartilhamento em regime de exceção ao idealizar o “ambiente perfeito” para uma criança em um processo de separação. Este “ambiente” criado pelos peritos talvez não seja possível ou aplicável nem mesmo em muitas famílias que ainda se encontram casadas. Considerar – por exemplo, a existência de litígio como barreira à adoção da guarda compartilhada incentiva um comportamento “anti-acordo” ou “anti-mediação” por parte daquele que detém a guarda. Seguramente um número razoável de litígios poderiam ser evitados se o judiciário coibisse este tipo de comportamento por parte das genitoras (em sua maioria) e de seus advogados. A simples mudança de mentalidade por parte de alguns juízes que colocam o bem estar da criança em primeiro lugar em uma separação, tem o poder de desestimular o litigante de má-fé pois ao compartilhar a guarda, os genitores são levados a negociar em bases eqüitativas com foco nos filhos.
Outras sociedades entenderam que a única forma de reduzir o incentivo ao litígio – cujo foco normalmente é dinheiro, ou pelo menos não permitir que este contamine as crianças, é inverter a lógica da guarda. Em outras palavras, o compartilhamento deveria ser a regra e não a exceção, sendo que caberia a parte contrária a tese convencer juiz e MP de que a outra parte é incapaz de compartilhar. Apesar de tanto a Constituição Federal quanto a Lei da Guarda Compartilhada criarem espaço para a adoção deste modelo, ainda prevalece no país o simplismo e o julgamento moral, cabendo a parte que ajuíza o pedido de compartilhamento justificar este pedido aos peritos judiciais, ou seja, ocorre hoje uma completa e descabida inversão de valores.
O raciocínio é simples, porém a adoção desta prática significaria minimizar o dilema moral e os custos sociais provocados pelo mesmo. Talvez esta mudança só ocorra quando os processos de guarda compartilhada começarem a inundar os tribunais superiores. No caso das pesquisas com células-tronco o STF já mostrou à sociedade qual é o melhor remédio contra a externalidade moral: transparência e profundidade.
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