A FUNÇÃO SUBSIDIÁRIA DOS PAIS SÓCIO AFETIVOS EM RELAÇÃO AOS PAIS ORIGINAIS ATUANTES
São Paulo - 2006
Resumo
Trata-se de estudo sobre o papel dos pais sócio afetivos (padrastos atuantes, em linguagem técnica tradicional) nos casos em que o pai original continua atuante. Trata também de questões jurídicas relevantes envolvendo o ambiente das famílias tais quais se apresentam nos dias de hoje.
Palavras-chave: Direito de Família; Conceitos de Família; Famílias reconstituídas; Padrasto; Pai sócioafetivo; afeto; Filiação; Parentesco; Poder Parental; Criança; Adolescente; Jovem.
SUMÁRIO
Introdução..........................................................................................................05
1. Antigamente era diferente ............................................................................07
2. A Família sob diferentes perspectivas (algumas breves pinceladas) ............09
3. Para que serve um pai? .................................................................................13
4. A proteção aos filhos, o parentesco e o poder familiar ................................ 17
5. As famílias reconstituídas e a (difícil) função subsidiária dos pais
Sócioafetivos emn relação aos pais originais atuantes...................22
6. Menino, fica com as costas retas! .................................................................27
7. Considerações finais .....................................................................................29
Bibliografia .......................................................................................................30
INTRODUÇÃO
Tenho pesquisado a produção dos autores brasileiros a respeito das novas composições familiares à luz do conceito do afeto, e resolvi tentar uma pequena contribuição ao tema, a partir das minhas observações pessoais e do que tenho aprendido com profissionais, mestres e autores muito especiais. Cito, com todo o respeito, Álvaro Villaça Azevedo, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Flávio Tartuce, Flávio Abrahão Nacle, José Faria Parisi, José Fernando Simão, Gustavo Renê Nicolau, Inacio de Carvalho Neto, Giselle Groeninga, Maria Berenice Dias, Rodrigo da Cunha Pereira e Luiz Edson Fachin, dentre outros, tão importantes quanto. Na verdade, a base conceitual da minha formação pessoal e depois jurídica vem dos tempos de minha primeira infância, quando aprendi com meu pai, o Professor Rubens Limongi França, a importância do estudo profundo e continuado, e apreendi a noção do justo e do razoável.
A expressão “função subsidiária” é utilizada no texto com o sentido de ajudar, contribuir, complementar e reforçar (HOLANDA, Aurélio Buarque de. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999) algo mais importante: a função dos pais naturais atuantes. Refiro-me à situação em que o casal original teve filhos em comum e depois se separou, constituindo cada um nova família, mas sem deixar de dar a devida atenção à prole gerada pelo casal. As novas famílias, agora reconstituídas, tornam-se organismos vivos razoavelmente complexos, a exigir dos novos casais muito cuidado no trato com as crianças e com os adolescentes. Novas famílias conjugais, diversas famílias parentais. Um potencial de muitas confusões, mas com possibilidade de soluções criativas.
Cuidarei de analisar o papel do pai sócioafetivo atuante tanto do ponto de vista material quanto afetivo (o marido ou companheiro da mulher que é mãe guardiã de seus filhos e que, portanto, traz à nova família conjugal os filhos havidos de relacionamento anterior) na situação em que o pai original (reconhecido juridicamente como tal - na verdade pai biológico, adotivo (original por força de lei) ou pai por meio das modernas técnicas de fecundação artificial) continua atuante, sem ter interrompido seus cuidados com os filhos, tanto do ponto de vista material quanto afetivo. Adianto-lhes que é papel a exigir muita atenção aos limites que se impõem ao pai sócioafetivo (tecnicamente conhecido como “padrasto” ou “pai afim”), tendo em vista o melhor interesse da criança e do adolescente. Faço também algumas referências a determinados artigos do Livro IV relativo ao Direito de Família do Código Civil de 2002, que, creio eu, estão a pedir revisão em função da realidade social das diferentes composições familiares da atualidade.
Sobre as referências bibliográficas, nem todas as obras que apresentarei ao final do trabalho terão citações específicas ao longo do texto; é que, ao preparar-me para escrever este trabalho, li vasto material útil e interessante, até formar minhas convicções pessoais. Muitas informações passaram a fazer parte do meu conhecimento geral sobre a matéria, sendo impossível especificar algumas citações.
Por fim, observo que, sendo este um trabalho que precisa ser sintético, não poderei nele estender-me por diferentes escolas de pensamento nem tão pouco farei extensas referências à legislação pertinente ou mesmo ao direito comparado, buscando privilegiar umas poucas e, no meu entendimento, relevantes contribuições específicas ao tema.
Primeiro capítulo
Antigamente era diferente!
Hoje em dia o Direito de Família Brasileiro parte do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável (Constituição Federal de 1988 (CF), art. 1o, III, e art. 226 parágrafo 7º). Segue também, quando se refere aos jovens, o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente (CF art.227 e Lei 8069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente), baseando-se também e cada vez mais no conceito de afeto (cada vez mais referido na doutrina em nossa jurisprudência - vide referência ao afeto no art. 1584, p. único do Código Civil Brasileiro de 2002 (CCB)). Mas nem sempre foi assim.
Em 1822, no ano da independência do Brasil, um certo menino, aos nove anos de idade, subiu num cavalo, andou horas até o porto mais próximo e, tempos depois chegou ao Rio de Janeiro para cuidar de sua própria vida, para decidir sobre seu destino, para fazer o que lhe desse na telha, para se tornar um homem de bem ou do mal. Trata-se de Irineu Evangelista de Sousa, filho de Mariana Batista de Carvalho e de João Evangelista de Sousa.
O que ocorrera? Simples. O pai de Irineu morrera com um tiro nunca bem explicado e Mariana, sua mãe, ficara responsável pela casa, pelo gado da fazenda e pela proteção da família, coisas incompatíveis com sua situação de viúva. Convenceram-na a se casar novamente e, após resistência que durou algum tempo, casou-se com quem os parentes haviam indicado para marido e novo chefe familiar. Ocorre que o tal candidato a marido não queria manter em sua nova casa filhos que não fossem seus e, assim, a filha de Mariana chamada Guilhermina foi rapidamente casada com um nada ilustre desconhecido aos doze anos de idade e seu irmão, três anos mais moço, que aprendera a ler e a escrever com sua jovem mãe, viúva aos 24 anos, foi convidado a, como dizia meu saudoso pai, “baixar noutro centro”. Na verdade, o novo chefe da família a destruiu como primeiro ato no comando da dita cuja. Não apenas interferiu negativamente na dinâmica familiar que encontrou; destruiu-a. Não chegou a ser agressivo com as crianças; simplesmente as ignorou.
Naquela época não existia algo como o artigo 1.636 do Código Civil de 2002. É que a família tradicional tinha objetivos um pouco diferentes dos atuais, sendo um dos principais a manutenção e o crescimento do patrimônio material e outro a preparação do filho homem para um dia ocupar o lugar do pai, sendo para isso preparado desde cedo, aprendendo e praticando as atividades dos adultos. Mas a típica família dos campos tinha também outras necessidades, sendo uma delas a sua própria sobrevivência em ambientes hostis, caso dos interiores do nosso Brasil naqueles tempos. Mariana não conseguiria sozinha fazer o que precisava e, por outro lado, a estrutura de poder familiar tinha outras características. Quando vivo, uma das tarefas do pai de Irineu era prepará-lo para que assumisse o posto de chefe da família. Morto João Evangelista antes de um tempo que pudesse ser considerado razoável para a continuidade das coisas relevantes da família, e mantidos os objetivos estratégicos familiares, fizeram o que tinha que ser feito: encontraram alguém para o posto, vago naquele momento. Durante os três anos em que foi a chefe da família, Mariana cuidou de ensinar o que pôde a Irineu: a ler, escrever e a fazer contas (até então o menino aprendera apenas a lidar com as coisas da fazenda, desde os tempos que começara a mover-se com as próprias pernas). Com o retorno de um homem à condição de chefe da família, voltaram as coisas ao rumo original, com pequena mudança: fora com as crianças! É que neste ponto do caso entra um novo fator: o novo chefe da família, como já foi dito, não queria a convivência de crianças que não foram por ele geradas e, como o chefe era ele, a decisão foi simples e sem contestação.
Neste capítulo utilizei como base histórica o livro de Jorge CALDEIRA sobre a vida do barão e visconde de Mauá, uma de nossas mais interessantes referências históricas da época do Império (CALDEIRA, Jorge. Mauá, Empresário do Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1995). As demais considerações as fiz com base em reflexões e em estudos diversos.
Segundo capítulo
A Família sob diferentes perspectivas (algumas breves pinceladas)
O respeitado psicanalista Jacques LACAN (LACAN, Jacques. Os complexos familiares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985), no capítulo sobre a instituição familiar, faz referência à questão da hierarquia na estrutura familiar, onde há a coação do adulto sobre a criança, coação essa que é uma das bases da formação moral da família humana. Ressalta LACAN (idem, p. 13) ser a família instituição fundamental à transmissão da cultura, à primeira educação, à repressão dos instintos, à aquisição da língua materna. No capítulo sobre o complexo de Édipo (ibidem, p. 42), LACAN observa que, aos quatro anos, ocorre algo como uma puberdade psicológica na criança, bastante prematura em relação à puberdade fisiológica, onde um desejo sexual precoce é naturalmente dirigido ao ser humano do sexo oposto mais próximo, e onde o ser humano mais próximo do mesmo sexo se apresenta como uma barreira, como algo que impede a realização do desejo sexual.
O Professor Orlando GOMES (GOMES, Orlando. Direito de Família. Rio de Janeiro: Forense, 1968, p. 23), referindo-se às acepções do vocábulo família, nos lembra existirem diversas acepções a respeito de seu emprego, o mais amplo referindo-se “às pessoas descendentes de ancestral comum, unidas pelos laços de parentesco, às quais se ajuntam os afins. Neste sentido, abrange, além dos cônjuges e da prole, os parentes colaterais até certo grau, como tios, sobrinhos, primos e os parentes por afinidade, sogros, genro, nora, cunhados”. A respeito de seu uso mais estrito, diz-nos o Mestre que a família: “Strictu sensu, limita-se aos cônjuges e seus descendentes, englobando também os cônjuges dos filhos” e, mais estreitamente ainda, refere-se “ao grupo composto pelos cônjuges e os filhos menores”. A cada uso do vocábulo, explica o autor, a lei atribui diferentes efeitos jurídicos.
As cientistas sociais Eva Maria LAKATOS e Marina de Andrade MARCONI (LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Sociologia Geral. 7ª ed. São Paulo: ATLAS, 1999) nos mostram que a família é uma das principais instituições sociais, ao lado de outras também importantes: a igreja, o Estado, as empresas e a escola. Apresentam-nos as principais características desta instituição: afeto, amor, lealdade e respeito como modelo de atitudes e comportamentos; aliança, brasão, escudo de armas e bens móveis como traços culturais simbólicos; lar, habitação e propriedades como referências culturais utilitárias; certidão de casamento, testamento e genealogia como códigos orais ou escritos. Lembram-nos ainda as autoras que a família tem como principal função a transmissão da cultura social aos jovens do grupo (idem, p. 321). No mundo ocidental como hoje o conhecemos, referimo-nos à família composta em sua base de homem, mulher e filhos (a família nuclear ou natal-conjugal, que se expande e, com o tempo, desaparece dando lugar a outras, por ela geradas). Dizem-nos as doutoras Eva e Marina que “a família é, em geral, considerada o fundamento básico e universal das sociedades, por se encontrar em todos os agrupamentos humanos, embora variem as estruturas e o funcionamento”. A família é, via de regra, um grupo caracterizado pela residência comum e que vive de modo cooperativo (conforme interpretação que faço da obra das referidas autoras).
A psicóloga Giselle Câmara GROENINGA (GROENINGA, Giselle Câmara. Família: um caleidoscópio de relações, em Direito de Família e Psicanálise, Rumo a uma nova Epistemologia, org. GROENINGA, Giselle Câmara e PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Rio de Janeiro: IMAGO, 2003, p. 125) nos ensina que a família “é sistema de relações que se traduz em conceitos e preconceitos, idéias e ideais, sonhos e realizações. Uma instituição que mexe com nossos mais caros sentimentos. Paradigmática para outros relacionamentos, célula mater da sociedade”. Observa ainda a autora (idem, p. 135) que existem ciclos vitais na dinâmica da família (à qual é inerente a constante mudança de funções), quais sejam: a formação do casal conjugal; o nascimento dos filhos; a adolescência dos filhos; a saída dos filhos do lar; a morte dos avós; o envelhecimento, a doença e a morte dos pais. A cada evento que ocorre, destaca a Dra. Giselle, mudam as posições dos membros da família, mudam as funções, manifestam-se os afetos.
Destaco ainda a percepção do Advogado Familiarista Dr. Rodrigo da Cunha PEREIRA (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Família, Direitos Humanos, Psicanálise e Inclusão Social, org. GOENINGA, Giselle Câmara e PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Rio de Janeiro: IMAGO, 2003, p. 158), segundo o qual, “com base em Lacan e Lévi-Strauss, podemos dizer que família é uma estrutura psíquica em que cada membro ocupa um lugar, uma função. Lugar de pai, lugar de mãe, lugar de filhos, sem, entretanto, estarem necessariamente ligados biologicamente”. Avança o Dr. Rodrigo: “Tanto é assim, uma questão de ‘lugar’, que um indivíduo pode ocupar o ‘lugar’ de pai ou mãe sem que seja o pai ou a mãe biológicos”, e arremata o autor: “É essa estruturação familiar que existe antes, e acima do direito, que nos interessa trazer para o campo jurídico”.
O Dr. Içami TIBA (TIBA, Içami. Adolescentes, quem ama educa. 8ª ed. São Paulo: Integrare, 2005), respeitado psiquiatra especialista no atendimento aos jovens, descreve a família de hoje como um “núcleo afetivo, socioeconômico, cultural e funcional num espírito de equipe no qual convivem filhos, meios-filhos, filhos postiços, pais-tradicionais-revolucionários-separados-recasados, o novo companheiro da mãe e/ou a nova companheira do pai (idem p.147). O Dr. Tiba, após apresentar-nos uma família típica moderna, com suas mais variadas composições, nos diz que “para acabar com essa confusão generalizada, o importante é que a família funcione como uma equipe. Cada integrante dessa equipe tem seus direitos e obrigações, combinadas e estabelecidas cm acordo dos outros integrantes, não importa se o outro é filho, meio-filho ou filho postiço. O que for bom para um não pode ser ruim para outro, diz a ética familiar. A equipe familiar é uma minisociedade e deve fazer valer a cidadania familiar”. A seguir, o autor dá alguns exemplos de responsabilidade de cada um: alguns usos da informática podem ficar a cargo dos adolescentes, já as finanças devem ser cuidadas por adultos. Cada um, em suma, deve ter funções e responsabilidades específicas para que a família funcione bem e em harmonia. Lembra-nos o Dr. Tiba que a família, antigamente, tinha um chefe familiar que era autoridade sem contestação: era o esquema patriarcal. Hoje é bem diferente, e os papéis precisam ser negociados.
A Dra. Maria Berenice DIAS, brilhante Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no capítulo sobre famílias plurais de seu Direito das famílias (DIAS, Maria Berenice. Direito das famílias. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2005, p. 48), nos diz que “a família identifica-se pela comunhão de vida, de amor e de afeto no plano da igualdade, da liberdade, da solidariedade e da responsabilidade recíproca. No momento em que o formato hierárquico da família cedeu à sua democratização, em que as relações são muito mais de igualdade e de respeito mútuo, e o traço fundamental é a lealdade, não mais existem razões morais, religiosas, políticas ou naturais que justifiquem essa excessiva e indevida ingerência do Estado na vida das pessoas”.
Por fim temos, a nos orientar juridicamente, a família definida em nossa CF/88, art. 226, como a “base da sociedade”, tendo portanto, especial proteção do Estado. Em seus parágrafos, define o artigo 226 as espécies de entidades familiares reconhecidas pelo Estado: a família tradicional formada pelo casamento entre homem e mulher (não está dito mas é implícito), a união estável entre homem e mulher e a família monoparental (formada por qualquer dos pais e seus descendentes). A propósito, e para não deixar passar em branco, escrevi noutro dia um texto que ainda não sei se foi publicado, defendendo a união estável entre pessoas do mesmo sexo, via inclusão de parágrafo específico no artigo 226 da CF 88.
Terceiro capítulo
Para que serve um pai?
Em 1822 um pai servia, em princípio, para cuidar dos interesses patrimoniais da família. Servia também para dar continuidade ao seu próprio nome e à continuidade genética de seus ascendentes. Servia a si mesmo, enfim, exercendo o controle familiar ao seu próprio modo, conforme interpretação do texto resumido a partir da leitura de Jorge CALDEIRA (1995) e de acordo com vasta literatura disponível nas boas bibliotecas e livrarias do país. No período em que o Mestre Orlando GOMES (1968) referiu-se às várias concepções do conceito de família, era ela (a família codificada) baseada no pátrio poder (definido pelo Professor Rubens Limongi FRANÇA (FRANÇA, Rubens Limongi. Instituições de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 1988) como “o complexo de direitos e obrigações que, em virtude do direito positivo (não apenas da lei) se atribuem ao pai, coadjuvado pela mãe, em relação à pessoa e aos bens dos filhos menores). Para a sociologia, o pai seria um dos pilares da estrutura familiar, tendo como uma das principais funções a transmissão da cultura aos mais jovens (LAKATOS, 1999). LACAN (1985) considera o pai um dos responsáveis pela transmissão da cultura, pela primeira educação e pela repressão dos instintos. A Dra. Giselle GROENINGA (2003), por sua vez, faz referência aos ciclos de vida da família, onde as funções mudam com as mudanças nos ciclos e onde diferentes modos de afeto são observados. Já o Dr. Rodrigo PEREIRA (2003) menciona as diferentes funções a serem exercidas por pessoas que não são as originais na função. Temos ainda a percepção abrangente do Dr. Içami TIBA (2005), para quem o pai, seja ele quem for, deverá ter uma função “negociada” e útil ao grupo familiar. Com a Dra. Maria Berenice DIAS (2005) referindo-se às famílias plurais, as funções do pai estariam inseridas no conceito de família democratizada, baseada no afeto, na responsabilidade, na igualdade e na lealdade, sendo, segundo a Dra. Berenice, indevida e inadequada a ingerência excessiva do Estado sobre a vida das pessoas. Por fim, há que se observar os preceitos constitucionais vigentes no país e a legislação pertinente, principalmente o CCB/2002 e o ECA, que definem as obrigações dos pais e o conteúdo do poder familiar, buscando, sempre, a dignidade da pessoa humana e o melhor interesse da criança e do adolescente (cuida-se não apenas das necessidades básicas dos jovens mas também de aspectos mais complexos e abstratos, como os relativos ao bem estar geral, à convivência, ao entretenimento etc), utilizando-se cada vez mais o conceito de afeto, referido tanto na legislação quanto cada vez mais pela boa doutrina e pela jurisprudência atual.
Independentemente da posição sócio-econômica da família, sempre será obrigação dos pais o cuidado material e afetivo dos filhos. É fundamental a compreensão a respeito da importância e da possibilidade de se levar aos filhos o afeto e a devida atenção para com as coisas relevantes para eles jovens, coisas essas que variam com a idade, com o sexo e com a condição sócio-econômica da criança e do adolescente, mas que têm em comum o conceito central de atenção e de afeto.
Para alguns jovens será importante que os pais participem da “comunidade do ORKUT” (caso dos jovens internautas convictos); para outros será relevante jogar bolinha de gude na rua. É tudo a mesma coisa: atenção, participação, relevância que o jovem precisa sentir ter para os pais. O bebê por certo quer mamar; se a mãe não está, cabe ao pai exercer a função, o que o fará de modo nunca completo mas no mínimo atendendo à função básica de alimentar (mesmo inexistindo o prazer conjunto de quem mama e de quem dá de mamar, próprio das mães!). O jovem em época de vestibular precisa estudar bastante, e alguém precisa ajudá-lo nesta árdua tarefa: ser competente nos estudos dando o melhor de si, mas sem saber o que ocorrerá no momento inevitável das provas, já que outros também estão a preparar-se adequadamente. O pai atualizado por certo será de grande utilidade no apoio aos referidos estudos. E a questão das profissões? Como escolher o que “ser quando crescer”? E as crianças a exigir cuidado o tempo todo, em tudo? E a comida, o passeio, o ir e vir de casa para a escola, da escola para casa, para o clube, para a casa de orações, para cá e para lá, o curativo após a queda na rua brincando de pegador ou na brincadeira de roda? E o tempo para, calmamente, ouvir as histórias das meninas em momento sonhador? E o escutar as angústias das meninas perdidamente apaixonadas e não correspondidas? E a tolerância com a percepção dos jovens poderosos de tudo aos quinze anos, com os seus próprios feitos? Antes, em outras épocas, as funções familiares eram bem mais estruturadas: algumas funções cabiam à mãe, outras, mais formais, ao pai. Hoje tudo mudou em função da inserção da mulher no mercado de trabalho, em função da imensa facilidade de comunicação digital das pessoas, em função da melhoria nos meios de transporte etc. O fato é que ser pai passou a ser função aberta, a ser especificada em cada momento e situação (não me refiro às funções materiais, mas às funções operacionais abstratas na definição e concretas na realização).
No mundo da Psicanálise, hoje em fase de compreensão por visionários juristas (Rodrigo da Cunha PEREIRA, dentre eles) e no mundo do Direito, hoje em fase de entendimento por brilhantes psicanalistas (Giselle GROENINGA, dentre outras), ambos vistos sob um prisma interdisciplinar, enxerga-se a função do pai tanto do ponto de vista da autoridade e dos impedimentos à criança quanto do ponto de vista do momento em que se encontra a família (em relação aos mencionados ciclos de vida pelos quais ela passa (GROENINGA, 2003)). Quer dizer, tanto o pai tem funções específicas suas do ponto de vista da formação psíquica do jovem quanto tem funções operacionais bastante variadas dependendo se a família é uma só (conjugal igual à parental) ou se existe mais de uma família envolvendo o jovem (duas famílias conjugais e uma família parental, por exemplo) ou ainda dependendo das composição da origem dos filhos: filhos em comum, filhos de relacionamentos anteriores convivendo ou não, filhos em tenra idade, filhos adolescentes, filhos com mais de 18 anos etc. Refiro-me às funções operacionais do pai como resultado de reflexão a respeito do que li nos textos do Dr. Rodrigo da Cunha PEREIRA (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de Família, uma abordagem psicanalítica. Belo Horizonte: Del Rey, 2003), onde ele, citando a jurista belga Bernadette Bawin LEGROS (LEGROS, Bernadette Bawin. Revue Trimestrielle de Droit Familial, p.5-14, p.6, in PEREIRA, 2003), nos mostra que a função paterna comporta três aspectos: a reprodução (função biológica), a relação educativa (função psicopedagógica) e a transmissão de um nome e de um patrimônio (função social). Na minha percepção, para os efeitos do presente trabalho, importa menos o momento da geração da criança e os aspectos patrimoniais (essas questões já se encontram mais bem especificadas em nosso Direito, creio eu) e mais à relação no dia a dia, o que inclui a referida função educativa e também uma função dita operacional, a qual implica no servir constantemente, agindo o pai de conformidade com as situações que surgem, sem muitas regras formais, com base no senso de oportunidade, de urgência às vezes e no já consagrado princípio do melhor interesse da criança e do adolescente mas, considerando também, o princípio da dignidade humana aplicado ao próprio pai, pois há que se evitar a tirania dos adolescentes em casa (TIBA, 2005).
Então, para que serve um pai? Ora, serve para dar continuidade à espécie, serve para transmitir os valores culturais relevantes ao grupo social onde se insere a família, serve para dar continuidade ao nome, serve para pagar as contas mas, além disso tudo (que é o básico), serve mesmo é para participar decisivamente da formação do jovem, para ajudar de modo relevante na sua realização pessoal, para transmitir o que sabe (com os devidos cuidados para não passar conceitos que já não são mais verdadeiros), para dar bons exemplos de conduta, para contribuir para a felicidade do jovem, para dizer não quando for o caso, para apoiar o jovem na construção de uma personalidade firme e bem sucedida filosoficamente. É o que eu chamo de funções operacionais do pai. Claro, nem todas as funções são necessariamente exclusivas da figura do pai, sendo também, em maior ou menor grau, exercidas pela mãe (algumas funções operacionais são exclusivas da mãe, a única figura a ter exclusividade funcional – para melhor entendimento do assunto, há que se aprofundar nas questões psicanalíticas relevantes) e pelos parentes mais próximos ao dia a dia do jovem – os avós, os irmãos, os tios etc. É como já nos relatou o Dr. Içami TIBA (2005): há que se negociar as funções de cada um na família. É como nos ensina a Dra. Giselle GROENINGA (2003): diferentes ciclos implicam em diferentes papéis. De qualquer modo, o afeto é o conceito norteador das funções operacionais dos pais na família. Certa vez, um velho professor de ensino médio, em discurso de abertura de ano letivo, disse mais ou menos o seguinte: “Pai , não seja omisso; não seja “bonzinho”; seja justo, honesto e dê o bom exemplo. Fale o que achar que deve sobre os acontecimentos, mesmo que isto possa ser muito cansativo”.
Pai, em suma, serve para ajudar os filhos a serem pessoas seguras de si, bem informadas, saudáveis e felizes.
Quarto capítulo
A proteção aos filhos, o parentesco e o poder familiar
Nosso Código Civil de 2002 trata da “proteção aos filhos” em capítulo dentro do título I “do direito pessoal”, subtítulo I “casamento”, e trata do “poder familiar” em capítulo dentro do subtítulo II “das relações de parentesco” sob o mesmo título I “do direito pessoal”. Evidentemente que a proteção aos filhos é assunto que diz respeito não só aos casados mas também aos que vivem em união estável, às famílias monoparentais, às famílias constituídas por casal homoafetivo (fato que precisa ser regulado pelo legislador) e às famílias reconstituídas (onde a mãe ou o pai têm novo companheiro (a) ou novo cônjuge). Não poderia deixar de fazer referência ao artigo 1.588 (do mesmo capítulo), o qual traz explícito um grande preconceito na medida em que determina que “o pai ou a mãe que contrair novas núpcias (observo eu que deve haver extensão no artigo, por mais preconceituoso que seja, aos novos casais que não contraem núpcias) não perde o direito de ter consigo os filhos, que só lhe poderão ser retirados por mandado judicial, provado que não são tratados convenientemente”. Ora, o artigo não existiria se “tratar convenientemente os filhos” por pai ou mãe que contrai novas núpcias fosse o normal e o óbvio para o legislador. Como destaca o fato, supõe que tratar bem filhos na situação proposta não é nem o normal nem o óbvio. De onde tirou isto o legislador?
Conforme o CCB 2002, no subtítulo II sobre parentesco, capítulo I sobre disposições gerais, temos que pais, mães, padrastos e madrastas são ascendentes e, portanto, parentes em linha reta dos filhos existentes na família, seja por laços naturais, seja por laços civis (incluindo-se aí os parentes por afinidade), sejam pais originais, sejam pais sócioafetivos (sempre que possível evito usar as palavras “padrasto” e “madrasta” por terem peso pejorativo na linguagem popular). Os ascendentes por afinidade (CCB 2002, artigo 1.591, caput) continuarão parentes em linha reta dos filhos do cônjuge ou companheiro (a) mesmo depois de eventual dissolução do casamento ou da união estável (é o que determina o artigo 1.591, parágrafo 2º). Quero com essa observação destacar a importância dos laços de família entre pais sócioafetivos e os filhos existentes na família reconstituída.
Sobre a questão do poder familiar (capítulo V do subtítulo sobre parentesco), na seção I relativa às disposições gerais, diz o artigo 1.630 (CCB 2002) que “os filhos estão sujeitos ao poder familiar, enquanto menores”. Em seqüência, o artigo 1.631 determina que “durante o casamento e a união estável, compete o poder familiar aos pais; na falta ou impedimento de um deles, o outro o exercerá com exclusividade”. O artigo seguinte, o 1.632, refere-se à continuidade da sociedade parental mesmo após o término da sociedade conjugal. Importante ressaltar que, de modo geral, pais e mães quando dissolvem a sociedade conjugal ou união estável, se esquecem que a sociedade parental continua em função do melhor interesse da criança e do adolescente, agindo de modo oposto ao indicado pelo bom senso e pelas leis que protegem os menores, com brigas e jogos maliciosos que em nada contribuem para a melhor formação dos jovens, obrigação principal dos pais nas diversas modalidades.
Na seção II, o artigo 1.634, enumera (de modo não taxativo creio eu em função das definições da CF 88 art. 227, e do Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8.069, de 13/07/1990) a competência dos pais quanto à pessoa dos filhos menores, referindo-se a questões como criação e educação, companhia e guarda, representação e assistência conforme o caso, exigência de obediência, respeito e prestação de serviços próprios de sua idade e condição. O ECA, por sua vez, em seu artigo 15, faz referências à liberdade, à dignidade e ao respeito que dos outros devem os jovens ter, e o artigo 16, detalhando o conteúdo do direito à liberdade, refere-se a várias espécies, dentre elas, o direito de opinar, expressar-se, participar da vida familiar e comunitária sem discriminação. Já o artigo 17 do ECA determina que “o direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais”. No artigo 33, sobre guarda de menores, temos que “a guarda obriga à prestação de assistência material, moral e educacional à criança e ao adolescente, conferindo a seu detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais”.
Claro está que a legislação não está preparada para tratar corretamente a questão das famílias reconstituídas, onde pais, mães, pais sócioafetivos (padrastos em linguagem técnica) e mães sócioafetivas (madrastas) têm funções específicas e relevantes no dia a dia da família – aquela constituída por pai ou mãe, filhos e o cônjuge ou companheiro (a) da mãe ou do pai. É que, conforme aprendemos na psicanálise e na sociologia, tem a família funções que lhe são próprias, e que escapam à abrangência do Direito; funções que lhe são anteriores na medida em que o Direito aparece em geral para ajustar situações não protegidas pelo Estado e que são relevantes à paz social ou à efetividade do conceito do justo como ideal.
O jovem precisa de uma mãe e de um pai, disso não temos dúvida. O problema é que, quando ocorre a dissolução conjugal ou da união estável, ficando o jovem sob a guarda de um dos pais, naturalmente surgirá uma lacuna funcional, mesmo que a outra parte (pai ou mãe que saiu do convívio diário familiar) mantenha-se a par dos acontecimentos, mesmo que compartilhe a guarda do jovem. O fato é que as coisas acontecem no dia a dia, na operação da entidade familiar, e se o pai ou a mãe não estão no dia a dia, fica impossível a manutenção da sensibilidade que o pai ou a mãe precisam ter para agirem no momento e na dose adequadas a cada caso concreto da vida do jovem. Também relevante é a questão da oportunidade: resolver a questão que surge no ato, no momento em que as coisas acontecem, no momento em que o jovem tem clareza sobre determinadas situações por ele vividas. Vejamos o caso do companheiro ou cônjuge que não é pai e que, na madrugada, vai buscar nas redondezas o jovem que, vindo da balada onde dançou, cantou, namorou e também tomou bebida alcoólica e ficou “diferente”, ou o caso da adolescente que, sentindo-se poderosa (conforme praxe na sua idade) enfrenta a mãe de modo inadequado tanto na forma quanto no conteúdo. Ou então suponhamos que a professora da escola telefona e avisa que a menina, de quatro anos de idade, caiu da escada e quebrou o braço, em situação onde a mãe está viajando a serviço e o pai mora em outra cidade. Ou mesmo suponhamos em que acabou a água e alguém precisa chamar o cidadão que entrega o garrafão e precisa pagar pelo serviço e pelo produto recebidos. Nessas hipóteses, representativas de milhares outras, para quem sobram essas corriqueiras tarefas, de fundamental importância para uma saudável operação familiar? Naturalmente sobram para o outro cabeça do casal da família reconstituída! Sobram para o pai sócioafetivo (claro, em outros exemplos sobrariam para a mãe sócioafetiva)!
O que quero dizer é que o poder familiar é, de fato, exercido pelo pai original, pela mãe original e também pelo novo companheiro ou novo cônjuge em família reconstituída. Isso é decorrência da natureza da dinâmica das relações sociais, funcionais e afetivas nas entidades familiares e que, apesar da determinação do artigo 1.636 do CCB 2002 em sentido contrário, as coisas são assim! Apenas para relembrarmos, diz o referido artigo 1.636 do CCB 2002 que “o pai ou a mãe que contrai novas núpcias, ou estabelece união estável, não perde, quanto aos filhos do relacionamento anterior, os direitos ao poder familiar, exercendo-os sem qualquer interferência do novo cônjuge ou companheiro”. “Santa ingenuidade”, diria meu pai; “ingerência do Estado na vida privada” poderiam dizer a Professora Giselda Hironaka, a Doutora Maria Berenice Dias e o Mestre Luiz Edson Fachin; “vixe”, diria Mestre Flávio Tartuce (na verdade não sei se disseram ou não; sequer sei se concordam ou se discordam de meu humilde ponto de vista jurídico, mas muito firme do ponto de vista pessoal), mas sinto que diriam, sim! Na verdade, se assim não fosse, estariam a Constituição Federal de 1988 e o ECA (conforme referi acima) desprestigiados e ignorados pelo Direito Civil, pois é fundamental que o novo cônjuge ou companheiro participe do poder familiar tendo em vista exatamente o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente (para resumir o caso). Claro que me refiro não ao padrão do Código Civil, que discrimina as famílias reconstituídas (vide observação sobre o artigo 1.588), mas ao padrão da melhor relação entre pais (naturais ou afins, originais ou sócioafetivos) e filhos, conforme nos ensinam a sociologia, a psicanálise e o melhor direito. Se assim não fosse, imaginem como ficaria a situação numa família reconstituída composta por mãe e seus filhos de relacionamento anterior, pai e seus filhos trazidos também de relacionamento anterior e ainda mais filho comum. De que modo seria exercido o poder familiar nas questões operacionais? Como evitar a discriminação deste ou daquele jovem? Como ser justo? Como transmitir cultura, como educar, orientar, dar bons exemplos? Como ser duro quando necessário? Que padrão seguir? Que funções exercer?
Claro está que o Código Civil precisa ser atualizado quanto a estas questões; claro está que o artigo 1.636 está totalmente equivocado. E como ficam os artigos 1.593 e 1.595 em relação ao artigo 1.636? Para que são referidos parentes por afinidade? Porque o parágrafo segundo do artigo 1.595 determina não se encerrar o vínculo por afinidade com a dissolução da sociedade conjugal (casamento ou união estável)? Porque tantas preocupações do legislador? Creio eu que a relevância do assunto está exatamente na relação de poder familiar, na relação de afeto e no dever que tem o novo cônjuge ou companheiro de interferir sim para que os filhos sob fatual guarda do casal reconstituído (sem excluir eventual guarda e as responsabilidades do pai ou da mãe ausentes do convívio operacional) sejam pessoas seguras de si, bem informadas, saudáveis e felizes.
Creio que toda esta questão envolvendo proteção dos filhos, relação de parentesco e poder familiar precisam ser revistas e atualizadas. Só mais dois pontos: 1) qual é o parentesco que existe entre o filho que o novo cônjuge ou companheiro traz à nova família e a filha que a nova cônjuge ou companheira traz à nova família? Hoje nenhum, mas se alguém perguntar aos jovens em situação de feliz convivência, dirão que são irmãos (de algum modo já resolveram este assunto); 2) Quais são as responsabilidades civis do novo cônjuge ou companheiro com efetivo poder familiar? Suponha que o adolescente saiu com o automóvel da família com o consentimento do pai sócioafeitvo, sem que a mãe soubesse do fato, e que atropelou um poste e um muro, a exigirem indenização por danos materiais. É evidente que a responsabilidade não é do pai (que não tem a guarda, ou mesmo que tem a guarda compartilhada, nem da mãe, mas sim do pai sócioafetivo).
Quinto capítulo
As famílias reconstituídas e a (difícil) função subsidiária dos pais sócioafetivos em relação aos pais originais atuantes
Segundo o Professor Waldyr GRISARD F. (GRISARD F., Waldyr. Famílias reconstituídas. Novas relações depois das separações. Parentesco e autoridade parental, in Afeto, Ética, Família e o Novo Código Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 657), “entende-se por família reconstituída a estrutura familiar originada de um novo casamento ou de nova união, depois de uma ruptura familiar, quando um dos integrantes do novo casal, ou ambos, tem filho ou filhos de uma relação precedente. De forma mais simples, é a entidade familiar na qual um dos adultos, ao menos, é um padrasto ou uma madrasta”. A bem da verdade, confesso-lhes que li este brilhante texto do Professor GRISARD F. quando meu próprio trabalho já se encontrava bem adiantado. É que há no trabalho do Professor Waldyr várias idéias que (digo isso com humildade e respeito) coincidem com as minhas próprias, já então redigidas. Afirmo-lhes que a referência acima é a primeira que utilizo do respeitado mestre da Universidade Federal do Paraná. Para outras interessantes e relevantes questões envolvendo as famílias reconstituídas recomendo-lhes a leitura do texto do Professor Waldyr (GRISARD F., 2004).
Sobre o tema das novas entidades familiares, que incluem o conceito de filiação sócioafetiva, consequência lógica da paternalidade sócioafetiva, a Dra. Maria Berenice DIAS (DIAS, Maria Berenice. Direito das Famílias. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 328) faz a seguinte referência:
“...todas essas mudanças refletem-se na identificação dos vínculos de parentalidade, levando ao surgimento de novos conceitos e de uma nova linguagem que melhor retrata a realidade atual: filiação social, filiação socioafetiva, estado de filho afetivo etc. Ditas expressões nada mais significam do que a consagração, também no campo da parentalidade, do mesmo elemento que passou a fazer parte do direito das famílias. Tal como aconteceu com a entidade familiar, também a filiação passou a ser identificada pela presença de um vínculo afetivo paterno-filial. Ampliou-se o conceito de paternidade, que passou a compreender o parentesco psicológico, que prevalece sobre a verdade biológica e a realidade legal. As transformações mais recentes por que passou a família, deixando de ser unidade de caráter econômico, social e religioso para se afirmar fundamentalmente como grupo de afetividade e companheirismo, imprimiram considerável reforço ao esvaziamento biológico da paternidade ( Dra. Maria Berenice, neste texto, faz referência ao Dr. João Baptista Villela, em seu trabalho sobre a desbiologização da paternidade)”.
Como já referido na Introdução deste trabalho, refiro-me ao pai sócioafetivo como sinônimo de padrasto atuante tanto do ponto de vista material quanto, principalmente, do ponto de vista afetivo.
O Dr. Edward TEYBER (TEYBER, Edward. Ajudando as crianças a conviver com o divórcio. São Paulo: Nobel, 1992, p. 197 e ss.), psicólogo infantil e diretor do Centro de Aconselhamento Comunitário da Califórnia State University, de San Bernardino, nos diz que
“As crianças que passam a integrar segundas famílias enfrentam dois problemas básicos. Primeiro, é muito difícil para os filhos aceitar a entrada de um novo cônjuge na família. As crianças, muitas vezes, acham que este novo cônjuge está ocupando o lugar de um de seus pais e, assim, resistem à mudança. As crianças em idade escolar e os adolescentes, sobretudo, normalmente são muito frios com esse “substituto” de seu genitor. Dessa forma, o novo casamento suscita conflitos de lealdade, que serão particularmente intensos quando os pais biológicos não se dão bem. Mesmo que os pais biológicos sejam cooperativos, no entanto, os filhos receiam estar traindo o outro genitor ao aceitarem o novo cônjuge. Os pais e padrastos precisam ter em mente que, a despeito da pouca freqüência dos contatos com o outro genitor, e por mais ineficaz e irresponsável que este tenha sido, os filhos precisam resguardar e proteger aspectos de seu relacionamento com ele. Os pais sábios aceitam e ratificam a necessidade dos filhos de manter viva sua ligação com os pais biológicos. Os adultos não devem pressionar os filhos a admitir problemas com o pai biológico ou aceitar o padrasto nos dois primeiros anos”.
O Dr. TEYBER (1992, p. 199) faz referência à existência de três estilos básicos de padrasto (ou pai sócioafetivo, conforme o chamamos), a saber: o pai primário, que substitui o pai original desde os primeiros tempos de vida das crianças, tornando-se esta uma tarefa razoavelmente tranqüila, com o surgimento desde logo de estreita ligação com o padrasto. Outro estilo é o do padrasto que se transforma no outro pai, o que ocorre normalmente com jovens entre 9 e 15 anos, quando há relação intensa ou ao menos freqüente com o pai original. Diz-nos o autor ser este estilo o mais difícil de ser enfrentado, dados potenciais conflitos de autoridade e responsabilidades. O Dr. TEYBER recomenda nestes casos que o pai sócioafetivo vá aos poucos assumindo funções parentais. O terceiro estilo é o do padrasto amigo, aplicável segundo o autor aos casos em que os jovens são crianças mais velhas ou adolescentes, não havendo espaço para conflitos de autoridade e de poder.
As referências acima vêm do mundo da psicologia aplicada às questões relativas à vida dos jovens nas famílias reconstituídas, e mostram uma realidade complexa e variada, mas mostram o lado do pai sócioafetivo. Mas, claro, há o outro lado da questão: como se comporta o pai original nos casos em que há um terceiro (o pai sócioafeitvo) na relação de poder parental (autoridade parental, no dizer do Dr. Gustavo TEPEDINO – TEPEDINO, Gustavo. A disciplina da guarda e a autoridade parental na ordem civil-constitucional, in Afeto, Ética, Família e o Novo Código Civil. Belo Horizonte: Del Rey/IBDFAM, 2004, p. 305)? O pai original poderá atuar de diferentes modos em diferentes épocas e em diferentes situações. Algumas vezes, sua postura será decorrência de sua situação pessoal em relação à mãe: maiores os conflitos entre os adultos, maiores as possibilidades de distanciamento ou ausência dos pais originais em relação ao dia a dia dos jovens, e maiores as possibilidades de o pai original não conseguir acompanhar a operação familiar. Melhor o relacionamento entre o casal conjugal original, maiores as chances de o pai ausente da operação familiar conseguir manter-se razoavelmente atualizado em relação às questões relevantes dos jovens.
Num extremo temos o pai original não atuante, situação em que está aberto o espaço para o pai sócioafetivo atuar na função operacional de “pai”; temos também a situação em que o pai original faz seu papel de modo formal ou pouco mais que isso. Visita, telefona, recebe nos fins de semana alternados, viaja em alguns períodos de férias com os jovens etc. Nestes casos a tendência é o gradual distanciamento afetivo, o que não implica necessariamente na perda do querer bem entre pai e filho, mas implica na perda progressiva da sensibilidade sobre os sentimentos e percepções do outro. No outro extremo temos o pai original atuante (telefonemas diários aos jovens, visitas duas ou três vezes por semana, guarda compartilhada ou não, atuação em assuntos relativos à educação, às questões de saúde etc.). Nos casos em que os pais originais são atuantes, a principal missão dos pais sócioafetivos será a de atuarem de modo subsidiário, solidário, complementar ao dos pais originais. A propósito, já conhecemos as funções típicas da figura do pai, apresentadas pelo Dr. Rodrigo da Cunha PEREIRA (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de Família, uma abordagem psicanalítica. Belo Horizonte: Del Rey, 2003), onde ele, citando a jurista belga Bernadette Bawin LEGROS (LEGROS, Bernadette Bawin. Revue Trimestrielle de Droit Familial, p.5-14, p.6, in PEREIRA, 2003), nos mostrou que a função paterna comportaria três aspectos: a reprodução (função biológica), a relação educativa (função psicopedagógica) e a transmissão de um nome e de um patrimônio (função social). Assim, a atuação subsidiária dos pais sócioafetivos ocorrerá especificamente na função psicopedagógica, ou seja, na relação chamada de educativa e, complementamos nós, atuará também nas questões operacionais da família, em seu dia a dia. Observo que esta atuação subsidiária dos pais sócioafetivos ocorre de modo não negociado entre as partes (entre as duas figuras que, de modos diferentes, exercem a mesma função de “pai”), variando com o tempo e os humores do casal original e com o grau de aceitação que ele pai sócioafetivo tem dos jovens. Afirmo que esta função requer diferentes posicionamentos do pai sócioafetivo nos casos de seu relacionamento direto com cada jovem da família (considerando-se os diversos momentos dos ciclos de vida da família e as diferentes possibilidades de relacionamento pai e filhos mencionadas neste trabalho: filhos de um, filhos de outro, filhos de ambos, filhos pequenos, adolescentes, meninas, meninos etc.), mas requer uma só postura do pai sócioafetivo no que se refere à sua própria pessoa: seu modo de viver, de trabalhar, de praticar esportes, de se dirigir à própria ex-mulher, de se dirigir à companheira ou cônjuge que com ele divide o poder fatual parental, sua conduta em sociedade, seus exemplos de atuação na profissão (iniciativas no seu dia a dia, questões morais e éticas, grau de atualização sobre práticas na profissão etc.), sua postura diante da questão das drogas e das coisas permitidas embora nem sempre adequadas, dentre outras questões relevantes. Ou seja, terá que ser um exemplo de conduta como se único pai fosse!
O interessante é que essas questões referem-se muito mais à coluna do dar que à coluna do receber; vale dizer, o pai sócioafetivo tem muito mais obrigações que direitos; tem que agir de modo exemplar independentemente de ter ou não algum tipo de reconhecimento por parte dos jovens ou mesmo do pai original quanto à sua atuação. Deve agir solidária e solitariamente na nobre função de pai sócioafetivo em caráter subsidiário, atuando onde não consegue atuar o pai original atuante, e evitando inadequados conflitos de percepções por parte dos jovens. Deve interferir positivamente na formação dos jovens apesar de o Código Civil dizer o contrário (art. 1.636 do CCB 2002). É claro que teorizar a respeito é infinitamente mais fácil do que de fato agir nas questões operacionais da família reconstituída.
Sexto capítulo
Menino, fica com as costas retas!
Noutro dia, soube do caso de um pai sócioafetivo atuando em caráter subsidiário a determinado pai original atuante onde o menino, quase adolescente, ao sair da escola, não encontrando a mãe e, depois de telefonar para ela e não conseguir contato, foi buscar apoio no pai sócioafetivo, pois sabia que, com boa chance, conseguiria falar com ele naquele momento (o menino sabia que poderia contar com ele naquele dia pois sabia que naquele dia ele estaria por perto, e sabia também que seu pai original, figura paterna querida e atuante, não estaria disponível naquele dia).
Soube também de outro caso, onde outro pai sócioafetivo, ao chegar em casa e não tendo encontrado uma jovem, para ela telefonou para saber por onde andava (a mãe estava trabalhando, praticamente incomunicável). Respondeu a jovem que havia saído com seu pai (original) para comprar material escolar. O pai (original) ao invés de se aborrecer com a interferência do pai sócioafetivo, o elogiou para a jovem, pois encantou-se com a preocupação do pai sócioafetivo para com a referido jovem, adolescente perto da maturidade.
Por fim, faço questão de citar algo que diz respeito à saúde e à cultura familiar (refiro-me a diversas famílias entrelaçadas). Conheci uma família onde o avô ensinou ao pai a ficar sempre reto, tanto nas questões abstratas quanto nas questões de saúde física (coluna reta). Essa questão de saúde, também questão de transmissão de costume familiar (o avô vivia a observar ao pai a mesma coisa que o bisavô o ensinara), vale dizer, também questão cultural local, transmitiu o pai aos seus filhos naturais, até que um dia se separou da mãe de seus filhos e constituiu nova família, passando a conviver com sua nova e sorridente esposa que, para a nova família, trouxe seus próprios filhos (de pai original muito atuante). Continuou o pai, agora pai também sócioafetivo de novos e irrequietos jovens, com os mesmos costumes, dentre eles, zangar-se com os novos filhos quando eles ficavam com as costas curvadas (algo comum entre os jovens de hoje, principalmente por causa do excessivo uso do computador e da Internet). Passou também a ser repreendido igualmente tanto pelos originais quanto pelos novos filhos (sócioafetivos estes) quando se esquecia dos ensinamentos do avô (seu pai), e passou a ouvir quase todo dia, em tom de brincadeira, de todos os jovens indistintamente, numa mistura de comunhão de cultura familiar, superação de conflitos diversos e muito afeto: menino, fica com as costas retas!
Sétimo capítulo
Considerações finais
Creio que já nos referimos o suficiente, no âmbito deste resumido trabalho, às diversas questões pertinentes. Estender o assunto requer maiores pesquisas e mais aprofundadas reflexões. As considerações finais são as seguintes:
1. A legislação Civil sobre as questões abordadas está desatualizada;
2. As questões de família incluem questões interdisciplinares bem mais complexas que o escopo do Direito: não pode o profissional do direito de família desconsiderar este fato;
3. Os pais sócioafetivos nas condições discutidas no trabalho precisam dar muito de si para serem felizes em família, e para darem a devida e possível contribuição à melhor formação dos jovens sob sua relativa guarda.
Oitavo capítulo
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Resumo
Trata-se de estudo sobre o papel dos pais sócio afetivos (padrastos atuantes, em linguagem técnica tradicional) nos casos em que o pai original continua atuante. Trata também de questões jurídicas relevantes envolvendo o ambiente das famílias tais quais se apresentam nos dias de hoje.
Palavras-chave: Direito de Família; Conceitos de Família; Famílias reconstituídas; Padrasto; Pai sócioafetivo; afeto; Filiação; Parentesco; Poder Parental; Criança; Adolescente; Jovem.
SUMÁRIO
Introdução..........................................................................................................05
1. Antigamente era diferente ............................................................................07
2. A Família sob diferentes perspectivas (algumas breves pinceladas) ............09
3. Para que serve um pai? .................................................................................13
4. A proteção aos filhos, o parentesco e o poder familiar ................................ 17
5. As famílias reconstituídas e a (difícil) função subsidiária dos pais
Sócioafetivos emn relação aos pais originais atuantes...................22
6. Menino, fica com as costas retas! .................................................................27
7. Considerações finais .....................................................................................29
Bibliografia .......................................................................................................30
INTRODUÇÃO
Tenho pesquisado a produção dos autores brasileiros a respeito das novas composições familiares à luz do conceito do afeto, e resolvi tentar uma pequena contribuição ao tema, a partir das minhas observações pessoais e do que tenho aprendido com profissionais, mestres e autores muito especiais. Cito, com todo o respeito, Álvaro Villaça Azevedo, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Flávio Tartuce, Flávio Abrahão Nacle, José Faria Parisi, José Fernando Simão, Gustavo Renê Nicolau, Inacio de Carvalho Neto, Giselle Groeninga, Maria Berenice Dias, Rodrigo da Cunha Pereira e Luiz Edson Fachin, dentre outros, tão importantes quanto. Na verdade, a base conceitual da minha formação pessoal e depois jurídica vem dos tempos de minha primeira infância, quando aprendi com meu pai, o Professor Rubens Limongi França, a importância do estudo profundo e continuado, e apreendi a noção do justo e do razoável.
A expressão “função subsidiária” é utilizada no texto com o sentido de ajudar, contribuir, complementar e reforçar (HOLANDA, Aurélio Buarque de. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999) algo mais importante: a função dos pais naturais atuantes. Refiro-me à situação em que o casal original teve filhos em comum e depois se separou, constituindo cada um nova família, mas sem deixar de dar a devida atenção à prole gerada pelo casal. As novas famílias, agora reconstituídas, tornam-se organismos vivos razoavelmente complexos, a exigir dos novos casais muito cuidado no trato com as crianças e com os adolescentes. Novas famílias conjugais, diversas famílias parentais. Um potencial de muitas confusões, mas com possibilidade de soluções criativas.
Cuidarei de analisar o papel do pai sócioafetivo atuante tanto do ponto de vista material quanto afetivo (o marido ou companheiro da mulher que é mãe guardiã de seus filhos e que, portanto, traz à nova família conjugal os filhos havidos de relacionamento anterior) na situação em que o pai original (reconhecido juridicamente como tal - na verdade pai biológico, adotivo (original por força de lei) ou pai por meio das modernas técnicas de fecundação artificial) continua atuante, sem ter interrompido seus cuidados com os filhos, tanto do ponto de vista material quanto afetivo. Adianto-lhes que é papel a exigir muita atenção aos limites que se impõem ao pai sócioafetivo (tecnicamente conhecido como “padrasto” ou “pai afim”), tendo em vista o melhor interesse da criança e do adolescente. Faço também algumas referências a determinados artigos do Livro IV relativo ao Direito de Família do Código Civil de 2002, que, creio eu, estão a pedir revisão em função da realidade social das diferentes composições familiares da atualidade.
Sobre as referências bibliográficas, nem todas as obras que apresentarei ao final do trabalho terão citações específicas ao longo do texto; é que, ao preparar-me para escrever este trabalho, li vasto material útil e interessante, até formar minhas convicções pessoais. Muitas informações passaram a fazer parte do meu conhecimento geral sobre a matéria, sendo impossível especificar algumas citações.
Por fim, observo que, sendo este um trabalho que precisa ser sintético, não poderei nele estender-me por diferentes escolas de pensamento nem tão pouco farei extensas referências à legislação pertinente ou mesmo ao direito comparado, buscando privilegiar umas poucas e, no meu entendimento, relevantes contribuições específicas ao tema.
Primeiro capítulo
Antigamente era diferente!
Hoje em dia o Direito de Família Brasileiro parte do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável (Constituição Federal de 1988 (CF), art. 1o, III, e art. 226 parágrafo 7º). Segue também, quando se refere aos jovens, o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente (CF art.227 e Lei 8069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente), baseando-se também e cada vez mais no conceito de afeto (cada vez mais referido na doutrina em nossa jurisprudência - vide referência ao afeto no art. 1584, p. único do Código Civil Brasileiro de 2002 (CCB)). Mas nem sempre foi assim.
Em 1822, no ano da independência do Brasil, um certo menino, aos nove anos de idade, subiu num cavalo, andou horas até o porto mais próximo e, tempos depois chegou ao Rio de Janeiro para cuidar de sua própria vida, para decidir sobre seu destino, para fazer o que lhe desse na telha, para se tornar um homem de bem ou do mal. Trata-se de Irineu Evangelista de Sousa, filho de Mariana Batista de Carvalho e de João Evangelista de Sousa.
O que ocorrera? Simples. O pai de Irineu morrera com um tiro nunca bem explicado e Mariana, sua mãe, ficara responsável pela casa, pelo gado da fazenda e pela proteção da família, coisas incompatíveis com sua situação de viúva. Convenceram-na a se casar novamente e, após resistência que durou algum tempo, casou-se com quem os parentes haviam indicado para marido e novo chefe familiar. Ocorre que o tal candidato a marido não queria manter em sua nova casa filhos que não fossem seus e, assim, a filha de Mariana chamada Guilhermina foi rapidamente casada com um nada ilustre desconhecido aos doze anos de idade e seu irmão, três anos mais moço, que aprendera a ler e a escrever com sua jovem mãe, viúva aos 24 anos, foi convidado a, como dizia meu saudoso pai, “baixar noutro centro”. Na verdade, o novo chefe da família a destruiu como primeiro ato no comando da dita cuja. Não apenas interferiu negativamente na dinâmica familiar que encontrou; destruiu-a. Não chegou a ser agressivo com as crianças; simplesmente as ignorou.
Naquela época não existia algo como o artigo 1.636 do Código Civil de 2002. É que a família tradicional tinha objetivos um pouco diferentes dos atuais, sendo um dos principais a manutenção e o crescimento do patrimônio material e outro a preparação do filho homem para um dia ocupar o lugar do pai, sendo para isso preparado desde cedo, aprendendo e praticando as atividades dos adultos. Mas a típica família dos campos tinha também outras necessidades, sendo uma delas a sua própria sobrevivência em ambientes hostis, caso dos interiores do nosso Brasil naqueles tempos. Mariana não conseguiria sozinha fazer o que precisava e, por outro lado, a estrutura de poder familiar tinha outras características. Quando vivo, uma das tarefas do pai de Irineu era prepará-lo para que assumisse o posto de chefe da família. Morto João Evangelista antes de um tempo que pudesse ser considerado razoável para a continuidade das coisas relevantes da família, e mantidos os objetivos estratégicos familiares, fizeram o que tinha que ser feito: encontraram alguém para o posto, vago naquele momento. Durante os três anos em que foi a chefe da família, Mariana cuidou de ensinar o que pôde a Irineu: a ler, escrever e a fazer contas (até então o menino aprendera apenas a lidar com as coisas da fazenda, desde os tempos que começara a mover-se com as próprias pernas). Com o retorno de um homem à condição de chefe da família, voltaram as coisas ao rumo original, com pequena mudança: fora com as crianças! É que neste ponto do caso entra um novo fator: o novo chefe da família, como já foi dito, não queria a convivência de crianças que não foram por ele geradas e, como o chefe era ele, a decisão foi simples e sem contestação.
Neste capítulo utilizei como base histórica o livro de Jorge CALDEIRA sobre a vida do barão e visconde de Mauá, uma de nossas mais interessantes referências históricas da época do Império (CALDEIRA, Jorge. Mauá, Empresário do Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1995). As demais considerações as fiz com base em reflexões e em estudos diversos.
Segundo capítulo
A Família sob diferentes perspectivas (algumas breves pinceladas)
O respeitado psicanalista Jacques LACAN (LACAN, Jacques. Os complexos familiares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985), no capítulo sobre a instituição familiar, faz referência à questão da hierarquia na estrutura familiar, onde há a coação do adulto sobre a criança, coação essa que é uma das bases da formação moral da família humana. Ressalta LACAN (idem, p. 13) ser a família instituição fundamental à transmissão da cultura, à primeira educação, à repressão dos instintos, à aquisição da língua materna. No capítulo sobre o complexo de Édipo (ibidem, p. 42), LACAN observa que, aos quatro anos, ocorre algo como uma puberdade psicológica na criança, bastante prematura em relação à puberdade fisiológica, onde um desejo sexual precoce é naturalmente dirigido ao ser humano do sexo oposto mais próximo, e onde o ser humano mais próximo do mesmo sexo se apresenta como uma barreira, como algo que impede a realização do desejo sexual.
O Professor Orlando GOMES (GOMES, Orlando. Direito de Família. Rio de Janeiro: Forense, 1968, p. 23), referindo-se às acepções do vocábulo família, nos lembra existirem diversas acepções a respeito de seu emprego, o mais amplo referindo-se “às pessoas descendentes de ancestral comum, unidas pelos laços de parentesco, às quais se ajuntam os afins. Neste sentido, abrange, além dos cônjuges e da prole, os parentes colaterais até certo grau, como tios, sobrinhos, primos e os parentes por afinidade, sogros, genro, nora, cunhados”. A respeito de seu uso mais estrito, diz-nos o Mestre que a família: “Strictu sensu, limita-se aos cônjuges e seus descendentes, englobando também os cônjuges dos filhos” e, mais estreitamente ainda, refere-se “ao grupo composto pelos cônjuges e os filhos menores”. A cada uso do vocábulo, explica o autor, a lei atribui diferentes efeitos jurídicos.
As cientistas sociais Eva Maria LAKATOS e Marina de Andrade MARCONI (LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Sociologia Geral. 7ª ed. São Paulo: ATLAS, 1999) nos mostram que a família é uma das principais instituições sociais, ao lado de outras também importantes: a igreja, o Estado, as empresas e a escola. Apresentam-nos as principais características desta instituição: afeto, amor, lealdade e respeito como modelo de atitudes e comportamentos; aliança, brasão, escudo de armas e bens móveis como traços culturais simbólicos; lar, habitação e propriedades como referências culturais utilitárias; certidão de casamento, testamento e genealogia como códigos orais ou escritos. Lembram-nos ainda as autoras que a família tem como principal função a transmissão da cultura social aos jovens do grupo (idem, p. 321). No mundo ocidental como hoje o conhecemos, referimo-nos à família composta em sua base de homem, mulher e filhos (a família nuclear ou natal-conjugal, que se expande e, com o tempo, desaparece dando lugar a outras, por ela geradas). Dizem-nos as doutoras Eva e Marina que “a família é, em geral, considerada o fundamento básico e universal das sociedades, por se encontrar em todos os agrupamentos humanos, embora variem as estruturas e o funcionamento”. A família é, via de regra, um grupo caracterizado pela residência comum e que vive de modo cooperativo (conforme interpretação que faço da obra das referidas autoras).
A psicóloga Giselle Câmara GROENINGA (GROENINGA, Giselle Câmara. Família: um caleidoscópio de relações, em Direito de Família e Psicanálise, Rumo a uma nova Epistemologia, org. GROENINGA, Giselle Câmara e PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Rio de Janeiro: IMAGO, 2003, p. 125) nos ensina que a família “é sistema de relações que se traduz em conceitos e preconceitos, idéias e ideais, sonhos e realizações. Uma instituição que mexe com nossos mais caros sentimentos. Paradigmática para outros relacionamentos, célula mater da sociedade”. Observa ainda a autora (idem, p. 135) que existem ciclos vitais na dinâmica da família (à qual é inerente a constante mudança de funções), quais sejam: a formação do casal conjugal; o nascimento dos filhos; a adolescência dos filhos; a saída dos filhos do lar; a morte dos avós; o envelhecimento, a doença e a morte dos pais. A cada evento que ocorre, destaca a Dra. Giselle, mudam as posições dos membros da família, mudam as funções, manifestam-se os afetos.
Destaco ainda a percepção do Advogado Familiarista Dr. Rodrigo da Cunha PEREIRA (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Família, Direitos Humanos, Psicanálise e Inclusão Social, org. GOENINGA, Giselle Câmara e PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Rio de Janeiro: IMAGO, 2003, p. 158), segundo o qual, “com base em Lacan e Lévi-Strauss, podemos dizer que família é uma estrutura psíquica em que cada membro ocupa um lugar, uma função. Lugar de pai, lugar de mãe, lugar de filhos, sem, entretanto, estarem necessariamente ligados biologicamente”. Avança o Dr. Rodrigo: “Tanto é assim, uma questão de ‘lugar’, que um indivíduo pode ocupar o ‘lugar’ de pai ou mãe sem que seja o pai ou a mãe biológicos”, e arremata o autor: “É essa estruturação familiar que existe antes, e acima do direito, que nos interessa trazer para o campo jurídico”.
O Dr. Içami TIBA (TIBA, Içami. Adolescentes, quem ama educa. 8ª ed. São Paulo: Integrare, 2005), respeitado psiquiatra especialista no atendimento aos jovens, descreve a família de hoje como um “núcleo afetivo, socioeconômico, cultural e funcional num espírito de equipe no qual convivem filhos, meios-filhos, filhos postiços, pais-tradicionais-revolucionários-separados-recasados, o novo companheiro da mãe e/ou a nova companheira do pai (idem p.147). O Dr. Tiba, após apresentar-nos uma família típica moderna, com suas mais variadas composições, nos diz que “para acabar com essa confusão generalizada, o importante é que a família funcione como uma equipe. Cada integrante dessa equipe tem seus direitos e obrigações, combinadas e estabelecidas cm acordo dos outros integrantes, não importa se o outro é filho, meio-filho ou filho postiço. O que for bom para um não pode ser ruim para outro, diz a ética familiar. A equipe familiar é uma minisociedade e deve fazer valer a cidadania familiar”. A seguir, o autor dá alguns exemplos de responsabilidade de cada um: alguns usos da informática podem ficar a cargo dos adolescentes, já as finanças devem ser cuidadas por adultos. Cada um, em suma, deve ter funções e responsabilidades específicas para que a família funcione bem e em harmonia. Lembra-nos o Dr. Tiba que a família, antigamente, tinha um chefe familiar que era autoridade sem contestação: era o esquema patriarcal. Hoje é bem diferente, e os papéis precisam ser negociados.
A Dra. Maria Berenice DIAS, brilhante Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no capítulo sobre famílias plurais de seu Direito das famílias (DIAS, Maria Berenice. Direito das famílias. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2005, p. 48), nos diz que “a família identifica-se pela comunhão de vida, de amor e de afeto no plano da igualdade, da liberdade, da solidariedade e da responsabilidade recíproca. No momento em que o formato hierárquico da família cedeu à sua democratização, em que as relações são muito mais de igualdade e de respeito mútuo, e o traço fundamental é a lealdade, não mais existem razões morais, religiosas, políticas ou naturais que justifiquem essa excessiva e indevida ingerência do Estado na vida das pessoas”.
Por fim temos, a nos orientar juridicamente, a família definida em nossa CF/88, art. 226, como a “base da sociedade”, tendo portanto, especial proteção do Estado. Em seus parágrafos, define o artigo 226 as espécies de entidades familiares reconhecidas pelo Estado: a família tradicional formada pelo casamento entre homem e mulher (não está dito mas é implícito), a união estável entre homem e mulher e a família monoparental (formada por qualquer dos pais e seus descendentes). A propósito, e para não deixar passar em branco, escrevi noutro dia um texto que ainda não sei se foi publicado, defendendo a união estável entre pessoas do mesmo sexo, via inclusão de parágrafo específico no artigo 226 da CF 88.
Terceiro capítulo
Para que serve um pai?
Em 1822 um pai servia, em princípio, para cuidar dos interesses patrimoniais da família. Servia também para dar continuidade ao seu próprio nome e à continuidade genética de seus ascendentes. Servia a si mesmo, enfim, exercendo o controle familiar ao seu próprio modo, conforme interpretação do texto resumido a partir da leitura de Jorge CALDEIRA (1995) e de acordo com vasta literatura disponível nas boas bibliotecas e livrarias do país. No período em que o Mestre Orlando GOMES (1968) referiu-se às várias concepções do conceito de família, era ela (a família codificada) baseada no pátrio poder (definido pelo Professor Rubens Limongi FRANÇA (FRANÇA, Rubens Limongi. Instituições de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 1988) como “o complexo de direitos e obrigações que, em virtude do direito positivo (não apenas da lei) se atribuem ao pai, coadjuvado pela mãe, em relação à pessoa e aos bens dos filhos menores). Para a sociologia, o pai seria um dos pilares da estrutura familiar, tendo como uma das principais funções a transmissão da cultura aos mais jovens (LAKATOS, 1999). LACAN (1985) considera o pai um dos responsáveis pela transmissão da cultura, pela primeira educação e pela repressão dos instintos. A Dra. Giselle GROENINGA (2003), por sua vez, faz referência aos ciclos de vida da família, onde as funções mudam com as mudanças nos ciclos e onde diferentes modos de afeto são observados. Já o Dr. Rodrigo PEREIRA (2003) menciona as diferentes funções a serem exercidas por pessoas que não são as originais na função. Temos ainda a percepção abrangente do Dr. Içami TIBA (2005), para quem o pai, seja ele quem for, deverá ter uma função “negociada” e útil ao grupo familiar. Com a Dra. Maria Berenice DIAS (2005) referindo-se às famílias plurais, as funções do pai estariam inseridas no conceito de família democratizada, baseada no afeto, na responsabilidade, na igualdade e na lealdade, sendo, segundo a Dra. Berenice, indevida e inadequada a ingerência excessiva do Estado sobre a vida das pessoas. Por fim, há que se observar os preceitos constitucionais vigentes no país e a legislação pertinente, principalmente o CCB/2002 e o ECA, que definem as obrigações dos pais e o conteúdo do poder familiar, buscando, sempre, a dignidade da pessoa humana e o melhor interesse da criança e do adolescente (cuida-se não apenas das necessidades básicas dos jovens mas também de aspectos mais complexos e abstratos, como os relativos ao bem estar geral, à convivência, ao entretenimento etc), utilizando-se cada vez mais o conceito de afeto, referido tanto na legislação quanto cada vez mais pela boa doutrina e pela jurisprudência atual.
Independentemente da posição sócio-econômica da família, sempre será obrigação dos pais o cuidado material e afetivo dos filhos. É fundamental a compreensão a respeito da importância e da possibilidade de se levar aos filhos o afeto e a devida atenção para com as coisas relevantes para eles jovens, coisas essas que variam com a idade, com o sexo e com a condição sócio-econômica da criança e do adolescente, mas que têm em comum o conceito central de atenção e de afeto.
Para alguns jovens será importante que os pais participem da “comunidade do ORKUT” (caso dos jovens internautas convictos); para outros será relevante jogar bolinha de gude na rua. É tudo a mesma coisa: atenção, participação, relevância que o jovem precisa sentir ter para os pais. O bebê por certo quer mamar; se a mãe não está, cabe ao pai exercer a função, o que o fará de modo nunca completo mas no mínimo atendendo à função básica de alimentar (mesmo inexistindo o prazer conjunto de quem mama e de quem dá de mamar, próprio das mães!). O jovem em época de vestibular precisa estudar bastante, e alguém precisa ajudá-lo nesta árdua tarefa: ser competente nos estudos dando o melhor de si, mas sem saber o que ocorrerá no momento inevitável das provas, já que outros também estão a preparar-se adequadamente. O pai atualizado por certo será de grande utilidade no apoio aos referidos estudos. E a questão das profissões? Como escolher o que “ser quando crescer”? E as crianças a exigir cuidado o tempo todo, em tudo? E a comida, o passeio, o ir e vir de casa para a escola, da escola para casa, para o clube, para a casa de orações, para cá e para lá, o curativo após a queda na rua brincando de pegador ou na brincadeira de roda? E o tempo para, calmamente, ouvir as histórias das meninas em momento sonhador? E o escutar as angústias das meninas perdidamente apaixonadas e não correspondidas? E a tolerância com a percepção dos jovens poderosos de tudo aos quinze anos, com os seus próprios feitos? Antes, em outras épocas, as funções familiares eram bem mais estruturadas: algumas funções cabiam à mãe, outras, mais formais, ao pai. Hoje tudo mudou em função da inserção da mulher no mercado de trabalho, em função da imensa facilidade de comunicação digital das pessoas, em função da melhoria nos meios de transporte etc. O fato é que ser pai passou a ser função aberta, a ser especificada em cada momento e situação (não me refiro às funções materiais, mas às funções operacionais abstratas na definição e concretas na realização).
No mundo da Psicanálise, hoje em fase de compreensão por visionários juristas (Rodrigo da Cunha PEREIRA, dentre eles) e no mundo do Direito, hoje em fase de entendimento por brilhantes psicanalistas (Giselle GROENINGA, dentre outras), ambos vistos sob um prisma interdisciplinar, enxerga-se a função do pai tanto do ponto de vista da autoridade e dos impedimentos à criança quanto do ponto de vista do momento em que se encontra a família (em relação aos mencionados ciclos de vida pelos quais ela passa (GROENINGA, 2003)). Quer dizer, tanto o pai tem funções específicas suas do ponto de vista da formação psíquica do jovem quanto tem funções operacionais bastante variadas dependendo se a família é uma só (conjugal igual à parental) ou se existe mais de uma família envolvendo o jovem (duas famílias conjugais e uma família parental, por exemplo) ou ainda dependendo das composição da origem dos filhos: filhos em comum, filhos de relacionamentos anteriores convivendo ou não, filhos em tenra idade, filhos adolescentes, filhos com mais de 18 anos etc. Refiro-me às funções operacionais do pai como resultado de reflexão a respeito do que li nos textos do Dr. Rodrigo da Cunha PEREIRA (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de Família, uma abordagem psicanalítica. Belo Horizonte: Del Rey, 2003), onde ele, citando a jurista belga Bernadette Bawin LEGROS (LEGROS, Bernadette Bawin. Revue Trimestrielle de Droit Familial, p.5-14, p.6, in PEREIRA, 2003), nos mostra que a função paterna comporta três aspectos: a reprodução (função biológica), a relação educativa (função psicopedagógica) e a transmissão de um nome e de um patrimônio (função social). Na minha percepção, para os efeitos do presente trabalho, importa menos o momento da geração da criança e os aspectos patrimoniais (essas questões já se encontram mais bem especificadas em nosso Direito, creio eu) e mais à relação no dia a dia, o que inclui a referida função educativa e também uma função dita operacional, a qual implica no servir constantemente, agindo o pai de conformidade com as situações que surgem, sem muitas regras formais, com base no senso de oportunidade, de urgência às vezes e no já consagrado princípio do melhor interesse da criança e do adolescente mas, considerando também, o princípio da dignidade humana aplicado ao próprio pai, pois há que se evitar a tirania dos adolescentes em casa (TIBA, 2005).
Então, para que serve um pai? Ora, serve para dar continuidade à espécie, serve para transmitir os valores culturais relevantes ao grupo social onde se insere a família, serve para dar continuidade ao nome, serve para pagar as contas mas, além disso tudo (que é o básico), serve mesmo é para participar decisivamente da formação do jovem, para ajudar de modo relevante na sua realização pessoal, para transmitir o que sabe (com os devidos cuidados para não passar conceitos que já não são mais verdadeiros), para dar bons exemplos de conduta, para contribuir para a felicidade do jovem, para dizer não quando for o caso, para apoiar o jovem na construção de uma personalidade firme e bem sucedida filosoficamente. É o que eu chamo de funções operacionais do pai. Claro, nem todas as funções são necessariamente exclusivas da figura do pai, sendo também, em maior ou menor grau, exercidas pela mãe (algumas funções operacionais são exclusivas da mãe, a única figura a ter exclusividade funcional – para melhor entendimento do assunto, há que se aprofundar nas questões psicanalíticas relevantes) e pelos parentes mais próximos ao dia a dia do jovem – os avós, os irmãos, os tios etc. É como já nos relatou o Dr. Içami TIBA (2005): há que se negociar as funções de cada um na família. É como nos ensina a Dra. Giselle GROENINGA (2003): diferentes ciclos implicam em diferentes papéis. De qualquer modo, o afeto é o conceito norteador das funções operacionais dos pais na família. Certa vez, um velho professor de ensino médio, em discurso de abertura de ano letivo, disse mais ou menos o seguinte: “Pai , não seja omisso; não seja “bonzinho”; seja justo, honesto e dê o bom exemplo. Fale o que achar que deve sobre os acontecimentos, mesmo que isto possa ser muito cansativo”.
Pai, em suma, serve para ajudar os filhos a serem pessoas seguras de si, bem informadas, saudáveis e felizes.
Quarto capítulo
A proteção aos filhos, o parentesco e o poder familiar
Nosso Código Civil de 2002 trata da “proteção aos filhos” em capítulo dentro do título I “do direito pessoal”, subtítulo I “casamento”, e trata do “poder familiar” em capítulo dentro do subtítulo II “das relações de parentesco” sob o mesmo título I “do direito pessoal”. Evidentemente que a proteção aos filhos é assunto que diz respeito não só aos casados mas também aos que vivem em união estável, às famílias monoparentais, às famílias constituídas por casal homoafetivo (fato que precisa ser regulado pelo legislador) e às famílias reconstituídas (onde a mãe ou o pai têm novo companheiro (a) ou novo cônjuge). Não poderia deixar de fazer referência ao artigo 1.588 (do mesmo capítulo), o qual traz explícito um grande preconceito na medida em que determina que “o pai ou a mãe que contrair novas núpcias (observo eu que deve haver extensão no artigo, por mais preconceituoso que seja, aos novos casais que não contraem núpcias) não perde o direito de ter consigo os filhos, que só lhe poderão ser retirados por mandado judicial, provado que não são tratados convenientemente”. Ora, o artigo não existiria se “tratar convenientemente os filhos” por pai ou mãe que contrai novas núpcias fosse o normal e o óbvio para o legislador. Como destaca o fato, supõe que tratar bem filhos na situação proposta não é nem o normal nem o óbvio. De onde tirou isto o legislador?
Conforme o CCB 2002, no subtítulo II sobre parentesco, capítulo I sobre disposições gerais, temos que pais, mães, padrastos e madrastas são ascendentes e, portanto, parentes em linha reta dos filhos existentes na família, seja por laços naturais, seja por laços civis (incluindo-se aí os parentes por afinidade), sejam pais originais, sejam pais sócioafetivos (sempre que possível evito usar as palavras “padrasto” e “madrasta” por terem peso pejorativo na linguagem popular). Os ascendentes por afinidade (CCB 2002, artigo 1.591, caput) continuarão parentes em linha reta dos filhos do cônjuge ou companheiro (a) mesmo depois de eventual dissolução do casamento ou da união estável (é o que determina o artigo 1.591, parágrafo 2º). Quero com essa observação destacar a importância dos laços de família entre pais sócioafetivos e os filhos existentes na família reconstituída.
Sobre a questão do poder familiar (capítulo V do subtítulo sobre parentesco), na seção I relativa às disposições gerais, diz o artigo 1.630 (CCB 2002) que “os filhos estão sujeitos ao poder familiar, enquanto menores”. Em seqüência, o artigo 1.631 determina que “durante o casamento e a união estável, compete o poder familiar aos pais; na falta ou impedimento de um deles, o outro o exercerá com exclusividade”. O artigo seguinte, o 1.632, refere-se à continuidade da sociedade parental mesmo após o término da sociedade conjugal. Importante ressaltar que, de modo geral, pais e mães quando dissolvem a sociedade conjugal ou união estável, se esquecem que a sociedade parental continua em função do melhor interesse da criança e do adolescente, agindo de modo oposto ao indicado pelo bom senso e pelas leis que protegem os menores, com brigas e jogos maliciosos que em nada contribuem para a melhor formação dos jovens, obrigação principal dos pais nas diversas modalidades.
Na seção II, o artigo 1.634, enumera (de modo não taxativo creio eu em função das definições da CF 88 art. 227, e do Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8.069, de 13/07/1990) a competência dos pais quanto à pessoa dos filhos menores, referindo-se a questões como criação e educação, companhia e guarda, representação e assistência conforme o caso, exigência de obediência, respeito e prestação de serviços próprios de sua idade e condição. O ECA, por sua vez, em seu artigo 15, faz referências à liberdade, à dignidade e ao respeito que dos outros devem os jovens ter, e o artigo 16, detalhando o conteúdo do direito à liberdade, refere-se a várias espécies, dentre elas, o direito de opinar, expressar-se, participar da vida familiar e comunitária sem discriminação. Já o artigo 17 do ECA determina que “o direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais”. No artigo 33, sobre guarda de menores, temos que “a guarda obriga à prestação de assistência material, moral e educacional à criança e ao adolescente, conferindo a seu detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais”.
Claro está que a legislação não está preparada para tratar corretamente a questão das famílias reconstituídas, onde pais, mães, pais sócioafetivos (padrastos em linguagem técnica) e mães sócioafetivas (madrastas) têm funções específicas e relevantes no dia a dia da família – aquela constituída por pai ou mãe, filhos e o cônjuge ou companheiro (a) da mãe ou do pai. É que, conforme aprendemos na psicanálise e na sociologia, tem a família funções que lhe são próprias, e que escapam à abrangência do Direito; funções que lhe são anteriores na medida em que o Direito aparece em geral para ajustar situações não protegidas pelo Estado e que são relevantes à paz social ou à efetividade do conceito do justo como ideal.
O jovem precisa de uma mãe e de um pai, disso não temos dúvida. O problema é que, quando ocorre a dissolução conjugal ou da união estável, ficando o jovem sob a guarda de um dos pais, naturalmente surgirá uma lacuna funcional, mesmo que a outra parte (pai ou mãe que saiu do convívio diário familiar) mantenha-se a par dos acontecimentos, mesmo que compartilhe a guarda do jovem. O fato é que as coisas acontecem no dia a dia, na operação da entidade familiar, e se o pai ou a mãe não estão no dia a dia, fica impossível a manutenção da sensibilidade que o pai ou a mãe precisam ter para agirem no momento e na dose adequadas a cada caso concreto da vida do jovem. Também relevante é a questão da oportunidade: resolver a questão que surge no ato, no momento em que as coisas acontecem, no momento em que o jovem tem clareza sobre determinadas situações por ele vividas. Vejamos o caso do companheiro ou cônjuge que não é pai e que, na madrugada, vai buscar nas redondezas o jovem que, vindo da balada onde dançou, cantou, namorou e também tomou bebida alcoólica e ficou “diferente”, ou o caso da adolescente que, sentindo-se poderosa (conforme praxe na sua idade) enfrenta a mãe de modo inadequado tanto na forma quanto no conteúdo. Ou então suponhamos que a professora da escola telefona e avisa que a menina, de quatro anos de idade, caiu da escada e quebrou o braço, em situação onde a mãe está viajando a serviço e o pai mora em outra cidade. Ou mesmo suponhamos em que acabou a água e alguém precisa chamar o cidadão que entrega o garrafão e precisa pagar pelo serviço e pelo produto recebidos. Nessas hipóteses, representativas de milhares outras, para quem sobram essas corriqueiras tarefas, de fundamental importância para uma saudável operação familiar? Naturalmente sobram para o outro cabeça do casal da família reconstituída! Sobram para o pai sócioafetivo (claro, em outros exemplos sobrariam para a mãe sócioafetiva)!
O que quero dizer é que o poder familiar é, de fato, exercido pelo pai original, pela mãe original e também pelo novo companheiro ou novo cônjuge em família reconstituída. Isso é decorrência da natureza da dinâmica das relações sociais, funcionais e afetivas nas entidades familiares e que, apesar da determinação do artigo 1.636 do CCB 2002 em sentido contrário, as coisas são assim! Apenas para relembrarmos, diz o referido artigo 1.636 do CCB 2002 que “o pai ou a mãe que contrai novas núpcias, ou estabelece união estável, não perde, quanto aos filhos do relacionamento anterior, os direitos ao poder familiar, exercendo-os sem qualquer interferência do novo cônjuge ou companheiro”. “Santa ingenuidade”, diria meu pai; “ingerência do Estado na vida privada” poderiam dizer a Professora Giselda Hironaka, a Doutora Maria Berenice Dias e o Mestre Luiz Edson Fachin; “vixe”, diria Mestre Flávio Tartuce (na verdade não sei se disseram ou não; sequer sei se concordam ou se discordam de meu humilde ponto de vista jurídico, mas muito firme do ponto de vista pessoal), mas sinto que diriam, sim! Na verdade, se assim não fosse, estariam a Constituição Federal de 1988 e o ECA (conforme referi acima) desprestigiados e ignorados pelo Direito Civil, pois é fundamental que o novo cônjuge ou companheiro participe do poder familiar tendo em vista exatamente o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente (para resumir o caso). Claro que me refiro não ao padrão do Código Civil, que discrimina as famílias reconstituídas (vide observação sobre o artigo 1.588), mas ao padrão da melhor relação entre pais (naturais ou afins, originais ou sócioafetivos) e filhos, conforme nos ensinam a sociologia, a psicanálise e o melhor direito. Se assim não fosse, imaginem como ficaria a situação numa família reconstituída composta por mãe e seus filhos de relacionamento anterior, pai e seus filhos trazidos também de relacionamento anterior e ainda mais filho comum. De que modo seria exercido o poder familiar nas questões operacionais? Como evitar a discriminação deste ou daquele jovem? Como ser justo? Como transmitir cultura, como educar, orientar, dar bons exemplos? Como ser duro quando necessário? Que padrão seguir? Que funções exercer?
Claro está que o Código Civil precisa ser atualizado quanto a estas questões; claro está que o artigo 1.636 está totalmente equivocado. E como ficam os artigos 1.593 e 1.595 em relação ao artigo 1.636? Para que são referidos parentes por afinidade? Porque o parágrafo segundo do artigo 1.595 determina não se encerrar o vínculo por afinidade com a dissolução da sociedade conjugal (casamento ou união estável)? Porque tantas preocupações do legislador? Creio eu que a relevância do assunto está exatamente na relação de poder familiar, na relação de afeto e no dever que tem o novo cônjuge ou companheiro de interferir sim para que os filhos sob fatual guarda do casal reconstituído (sem excluir eventual guarda e as responsabilidades do pai ou da mãe ausentes do convívio operacional) sejam pessoas seguras de si, bem informadas, saudáveis e felizes.
Creio que toda esta questão envolvendo proteção dos filhos, relação de parentesco e poder familiar precisam ser revistas e atualizadas. Só mais dois pontos: 1) qual é o parentesco que existe entre o filho que o novo cônjuge ou companheiro traz à nova família e a filha que a nova cônjuge ou companheira traz à nova família? Hoje nenhum, mas se alguém perguntar aos jovens em situação de feliz convivência, dirão que são irmãos (de algum modo já resolveram este assunto); 2) Quais são as responsabilidades civis do novo cônjuge ou companheiro com efetivo poder familiar? Suponha que o adolescente saiu com o automóvel da família com o consentimento do pai sócioafeitvo, sem que a mãe soubesse do fato, e que atropelou um poste e um muro, a exigirem indenização por danos materiais. É evidente que a responsabilidade não é do pai (que não tem a guarda, ou mesmo que tem a guarda compartilhada, nem da mãe, mas sim do pai sócioafetivo).
Quinto capítulo
As famílias reconstituídas e a (difícil) função subsidiária dos pais sócioafetivos em relação aos pais originais atuantes
Segundo o Professor Waldyr GRISARD F. (GRISARD F., Waldyr. Famílias reconstituídas. Novas relações depois das separações. Parentesco e autoridade parental, in Afeto, Ética, Família e o Novo Código Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 657), “entende-se por família reconstituída a estrutura familiar originada de um novo casamento ou de nova união, depois de uma ruptura familiar, quando um dos integrantes do novo casal, ou ambos, tem filho ou filhos de uma relação precedente. De forma mais simples, é a entidade familiar na qual um dos adultos, ao menos, é um padrasto ou uma madrasta”. A bem da verdade, confesso-lhes que li este brilhante texto do Professor GRISARD F. quando meu próprio trabalho já se encontrava bem adiantado. É que há no trabalho do Professor Waldyr várias idéias que (digo isso com humildade e respeito) coincidem com as minhas próprias, já então redigidas. Afirmo-lhes que a referência acima é a primeira que utilizo do respeitado mestre da Universidade Federal do Paraná. Para outras interessantes e relevantes questões envolvendo as famílias reconstituídas recomendo-lhes a leitura do texto do Professor Waldyr (GRISARD F., 2004).
Sobre o tema das novas entidades familiares, que incluem o conceito de filiação sócioafetiva, consequência lógica da paternalidade sócioafetiva, a Dra. Maria Berenice DIAS (DIAS, Maria Berenice. Direito das Famílias. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 328) faz a seguinte referência:
“...todas essas mudanças refletem-se na identificação dos vínculos de parentalidade, levando ao surgimento de novos conceitos e de uma nova linguagem que melhor retrata a realidade atual: filiação social, filiação socioafetiva, estado de filho afetivo etc. Ditas expressões nada mais significam do que a consagração, também no campo da parentalidade, do mesmo elemento que passou a fazer parte do direito das famílias. Tal como aconteceu com a entidade familiar, também a filiação passou a ser identificada pela presença de um vínculo afetivo paterno-filial. Ampliou-se o conceito de paternidade, que passou a compreender o parentesco psicológico, que prevalece sobre a verdade biológica e a realidade legal. As transformações mais recentes por que passou a família, deixando de ser unidade de caráter econômico, social e religioso para se afirmar fundamentalmente como grupo de afetividade e companheirismo, imprimiram considerável reforço ao esvaziamento biológico da paternidade ( Dra. Maria Berenice, neste texto, faz referência ao Dr. João Baptista Villela, em seu trabalho sobre a desbiologização da paternidade)”.
Como já referido na Introdução deste trabalho, refiro-me ao pai sócioafetivo como sinônimo de padrasto atuante tanto do ponto de vista material quanto, principalmente, do ponto de vista afetivo.
O Dr. Edward TEYBER (TEYBER, Edward. Ajudando as crianças a conviver com o divórcio. São Paulo: Nobel, 1992, p. 197 e ss.), psicólogo infantil e diretor do Centro de Aconselhamento Comunitário da Califórnia State University, de San Bernardino, nos diz que
“As crianças que passam a integrar segundas famílias enfrentam dois problemas básicos. Primeiro, é muito difícil para os filhos aceitar a entrada de um novo cônjuge na família. As crianças, muitas vezes, acham que este novo cônjuge está ocupando o lugar de um de seus pais e, assim, resistem à mudança. As crianças em idade escolar e os adolescentes, sobretudo, normalmente são muito frios com esse “substituto” de seu genitor. Dessa forma, o novo casamento suscita conflitos de lealdade, que serão particularmente intensos quando os pais biológicos não se dão bem. Mesmo que os pais biológicos sejam cooperativos, no entanto, os filhos receiam estar traindo o outro genitor ao aceitarem o novo cônjuge. Os pais e padrastos precisam ter em mente que, a despeito da pouca freqüência dos contatos com o outro genitor, e por mais ineficaz e irresponsável que este tenha sido, os filhos precisam resguardar e proteger aspectos de seu relacionamento com ele. Os pais sábios aceitam e ratificam a necessidade dos filhos de manter viva sua ligação com os pais biológicos. Os adultos não devem pressionar os filhos a admitir problemas com o pai biológico ou aceitar o padrasto nos dois primeiros anos”.
O Dr. TEYBER (1992, p. 199) faz referência à existência de três estilos básicos de padrasto (ou pai sócioafetivo, conforme o chamamos), a saber: o pai primário, que substitui o pai original desde os primeiros tempos de vida das crianças, tornando-se esta uma tarefa razoavelmente tranqüila, com o surgimento desde logo de estreita ligação com o padrasto. Outro estilo é o do padrasto que se transforma no outro pai, o que ocorre normalmente com jovens entre 9 e 15 anos, quando há relação intensa ou ao menos freqüente com o pai original. Diz-nos o autor ser este estilo o mais difícil de ser enfrentado, dados potenciais conflitos de autoridade e responsabilidades. O Dr. TEYBER recomenda nestes casos que o pai sócioafetivo vá aos poucos assumindo funções parentais. O terceiro estilo é o do padrasto amigo, aplicável segundo o autor aos casos em que os jovens são crianças mais velhas ou adolescentes, não havendo espaço para conflitos de autoridade e de poder.
As referências acima vêm do mundo da psicologia aplicada às questões relativas à vida dos jovens nas famílias reconstituídas, e mostram uma realidade complexa e variada, mas mostram o lado do pai sócioafetivo. Mas, claro, há o outro lado da questão: como se comporta o pai original nos casos em que há um terceiro (o pai sócioafeitvo) na relação de poder parental (autoridade parental, no dizer do Dr. Gustavo TEPEDINO – TEPEDINO, Gustavo. A disciplina da guarda e a autoridade parental na ordem civil-constitucional, in Afeto, Ética, Família e o Novo Código Civil. Belo Horizonte: Del Rey/IBDFAM, 2004, p. 305)? O pai original poderá atuar de diferentes modos em diferentes épocas e em diferentes situações. Algumas vezes, sua postura será decorrência de sua situação pessoal em relação à mãe: maiores os conflitos entre os adultos, maiores as possibilidades de distanciamento ou ausência dos pais originais em relação ao dia a dia dos jovens, e maiores as possibilidades de o pai original não conseguir acompanhar a operação familiar. Melhor o relacionamento entre o casal conjugal original, maiores as chances de o pai ausente da operação familiar conseguir manter-se razoavelmente atualizado em relação às questões relevantes dos jovens.
Num extremo temos o pai original não atuante, situação em que está aberto o espaço para o pai sócioafetivo atuar na função operacional de “pai”; temos também a situação em que o pai original faz seu papel de modo formal ou pouco mais que isso. Visita, telefona, recebe nos fins de semana alternados, viaja em alguns períodos de férias com os jovens etc. Nestes casos a tendência é o gradual distanciamento afetivo, o que não implica necessariamente na perda do querer bem entre pai e filho, mas implica na perda progressiva da sensibilidade sobre os sentimentos e percepções do outro. No outro extremo temos o pai original atuante (telefonemas diários aos jovens, visitas duas ou três vezes por semana, guarda compartilhada ou não, atuação em assuntos relativos à educação, às questões de saúde etc.). Nos casos em que os pais originais são atuantes, a principal missão dos pais sócioafetivos será a de atuarem de modo subsidiário, solidário, complementar ao dos pais originais. A propósito, já conhecemos as funções típicas da figura do pai, apresentadas pelo Dr. Rodrigo da Cunha PEREIRA (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de Família, uma abordagem psicanalítica. Belo Horizonte: Del Rey, 2003), onde ele, citando a jurista belga Bernadette Bawin LEGROS (LEGROS, Bernadette Bawin. Revue Trimestrielle de Droit Familial, p.5-14, p.6, in PEREIRA, 2003), nos mostrou que a função paterna comportaria três aspectos: a reprodução (função biológica), a relação educativa (função psicopedagógica) e a transmissão de um nome e de um patrimônio (função social). Assim, a atuação subsidiária dos pais sócioafetivos ocorrerá especificamente na função psicopedagógica, ou seja, na relação chamada de educativa e, complementamos nós, atuará também nas questões operacionais da família, em seu dia a dia. Observo que esta atuação subsidiária dos pais sócioafetivos ocorre de modo não negociado entre as partes (entre as duas figuras que, de modos diferentes, exercem a mesma função de “pai”), variando com o tempo e os humores do casal original e com o grau de aceitação que ele pai sócioafetivo tem dos jovens. Afirmo que esta função requer diferentes posicionamentos do pai sócioafetivo nos casos de seu relacionamento direto com cada jovem da família (considerando-se os diversos momentos dos ciclos de vida da família e as diferentes possibilidades de relacionamento pai e filhos mencionadas neste trabalho: filhos de um, filhos de outro, filhos de ambos, filhos pequenos, adolescentes, meninas, meninos etc.), mas requer uma só postura do pai sócioafetivo no que se refere à sua própria pessoa: seu modo de viver, de trabalhar, de praticar esportes, de se dirigir à própria ex-mulher, de se dirigir à companheira ou cônjuge que com ele divide o poder fatual parental, sua conduta em sociedade, seus exemplos de atuação na profissão (iniciativas no seu dia a dia, questões morais e éticas, grau de atualização sobre práticas na profissão etc.), sua postura diante da questão das drogas e das coisas permitidas embora nem sempre adequadas, dentre outras questões relevantes. Ou seja, terá que ser um exemplo de conduta como se único pai fosse!
O interessante é que essas questões referem-se muito mais à coluna do dar que à coluna do receber; vale dizer, o pai sócioafetivo tem muito mais obrigações que direitos; tem que agir de modo exemplar independentemente de ter ou não algum tipo de reconhecimento por parte dos jovens ou mesmo do pai original quanto à sua atuação. Deve agir solidária e solitariamente na nobre função de pai sócioafetivo em caráter subsidiário, atuando onde não consegue atuar o pai original atuante, e evitando inadequados conflitos de percepções por parte dos jovens. Deve interferir positivamente na formação dos jovens apesar de o Código Civil dizer o contrário (art. 1.636 do CCB 2002). É claro que teorizar a respeito é infinitamente mais fácil do que de fato agir nas questões operacionais da família reconstituída.
Sexto capítulo
Menino, fica com as costas retas!
Noutro dia, soube do caso de um pai sócioafetivo atuando em caráter subsidiário a determinado pai original atuante onde o menino, quase adolescente, ao sair da escola, não encontrando a mãe e, depois de telefonar para ela e não conseguir contato, foi buscar apoio no pai sócioafetivo, pois sabia que, com boa chance, conseguiria falar com ele naquele momento (o menino sabia que poderia contar com ele naquele dia pois sabia que naquele dia ele estaria por perto, e sabia também que seu pai original, figura paterna querida e atuante, não estaria disponível naquele dia).
Soube também de outro caso, onde outro pai sócioafetivo, ao chegar em casa e não tendo encontrado uma jovem, para ela telefonou para saber por onde andava (a mãe estava trabalhando, praticamente incomunicável). Respondeu a jovem que havia saído com seu pai (original) para comprar material escolar. O pai (original) ao invés de se aborrecer com a interferência do pai sócioafetivo, o elogiou para a jovem, pois encantou-se com a preocupação do pai sócioafetivo para com a referido jovem, adolescente perto da maturidade.
Por fim, faço questão de citar algo que diz respeito à saúde e à cultura familiar (refiro-me a diversas famílias entrelaçadas). Conheci uma família onde o avô ensinou ao pai a ficar sempre reto, tanto nas questões abstratas quanto nas questões de saúde física (coluna reta). Essa questão de saúde, também questão de transmissão de costume familiar (o avô vivia a observar ao pai a mesma coisa que o bisavô o ensinara), vale dizer, também questão cultural local, transmitiu o pai aos seus filhos naturais, até que um dia se separou da mãe de seus filhos e constituiu nova família, passando a conviver com sua nova e sorridente esposa que, para a nova família, trouxe seus próprios filhos (de pai original muito atuante). Continuou o pai, agora pai também sócioafetivo de novos e irrequietos jovens, com os mesmos costumes, dentre eles, zangar-se com os novos filhos quando eles ficavam com as costas curvadas (algo comum entre os jovens de hoje, principalmente por causa do excessivo uso do computador e da Internet). Passou também a ser repreendido igualmente tanto pelos originais quanto pelos novos filhos (sócioafetivos estes) quando se esquecia dos ensinamentos do avô (seu pai), e passou a ouvir quase todo dia, em tom de brincadeira, de todos os jovens indistintamente, numa mistura de comunhão de cultura familiar, superação de conflitos diversos e muito afeto: menino, fica com as costas retas!
Sétimo capítulo
Considerações finais
Creio que já nos referimos o suficiente, no âmbito deste resumido trabalho, às diversas questões pertinentes. Estender o assunto requer maiores pesquisas e mais aprofundadas reflexões. As considerações finais são as seguintes:
1. A legislação Civil sobre as questões abordadas está desatualizada;
2. As questões de família incluem questões interdisciplinares bem mais complexas que o escopo do Direito: não pode o profissional do direito de família desconsiderar este fato;
3. Os pais sócioafetivos nas condições discutidas no trabalho precisam dar muito de si para serem felizes em família, e para darem a devida e possível contribuição à melhor formação dos jovens sob sua relativa guarda.
Oitavo capítulo
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