Monografias

PSICANÁLISE E MEDIAÇÃO - MEIOS EFETIVOS DE AÇÃO

“A linguagem é o espaço de expressividade do mundo, a instância de articulação de sua inteligibilidade.”
L. B. Puntel, Grundlagen einer Theorie der Wahrheit


Sumário

1. Introdução. 2. Organização e Família. 3. Sentimento de Pertença e Ethos. 4. Identidade Obscurecida. 5. Ação Judicial vs. Atuação Judicial. 6. O Melhor Interesse da Criança. 7. A Mediação. 8. Conclusão.


1. INTRODUÇÃO

Desde a sua criação, no final do século passado, a Psicanálise tem trazido aportes consideráveis para a compreensão do ser humano.

Os resultados advindos da investigação psicanalítica e as aplicações provenientes de seu corpo de teorias marcaram de forma indelével todas as produções humanas — das ciências à filosofia e às artes, passando pela outorga popular de significados a sonhos e lapsos, num uso quase coloquial de seus sofisticados conceitos. Atualmente não há quem não tenha noções, mesmo que rudimentares, de Inconsciente, Subconsciente, Consciente, Repressão, Mecanismos de Defesa, Id, Ego, Superego, Complexo de Édipo etc. Como tão bem expressou Luiz Zanin Oricchio, “Freud tornou-se um clássico, digamos, como Nietzsche, Weber ou Marx — o que significa que se pode pensar contra ele, mas não se pode pensar sem ele”.

Isso quer dizer que todas as formas de manifestação científica e cultural foram matizadas pelo ofício do mestre de Viena.
E o Direito, como ciência das normas que disciplinam a conduta do homem em sociedade, não é refratário a tal influência.
A conduta que pretende disciplinar é a de um homem imiscuído na Psicanálise e penetrado por ela. Homem e Direito têm seus referenciais tingidos por esse paradigma. Ao olhar sua angústia, anseios e desejos, esse homem imerso em uma existência repassada pela busca de um bálsamo para suas dores demanda uma resposta que lhe restitua a dignidade. E o praticante do Direito, por seu turno, pode dispensar àquele que o procura um acolhimento que o tire da alienação a que está submetido.

A inserção na trama do Judiciário — locus de prática do Direito —, na maioria das vezes, desconhece as individualidades. É um paradoxo: tenta garantir aos homens o exercício e manutenção dos privilégios como cidadãos, alheando-os, porém, do processo de decisão e arbítrio.


2. ORGANIZAÇÃO E FAMÍLIA – UMA VISÃO PSICANALÍTICA

Todas as associações e agrupamentos se dão pelo afeto. Não só as organizações
familiares, mas também as organizações comerciais são associações de pessoas que se juntam por motivos afetivos, para atender necessidades afetivas. Em seu cerne, até as grandes empresas começaram e se mantêm sobretudo pelos aspectos emocionais, sejam conscientes ou inconscientes.

A família, diversamente de outras sociedades, não se desfaz. Uma vez constituída, ela permanece. A estrutura pode mudar, quando há uma separação ou morte, por exemplo, mas a organização — família — prossegue. Os seres humanos nascem em famílias. Todos nós, tivemos pai, mãe, às vezes irmãos. Só nos tornamos humanos pela ação humanizadora da família.

É na família que os aspectos emocionais se evidenciam. As emoções são o tecido da composição familiar. É nela que os indivíduos aprendem, vivenciam e exercitam os modelos que servirão de protótipo para todas as relações que desenvolverão ao longo da vida, inclusive as comerciais.

Ela pode ser como a polis grega, na qual “os indivíduos se reúnem pelo laço afetivo da amizade, por uma aproximação espontânea [...] visando à justiça, e à virtude, ao bem-estar e à paz”, cujos membros se acolhem e se suportam mutuamente, ou pode ser seu oposto, abrigando um relacionamento despótico em que as pessoas não estão reunidas, mas submetidas pela tirania. Aqui, os elementos da associação familiar não se respeitam como entidades separadas, individuais e autônomas, mas funcionam indiscriminadamente. Não se observa “com-padecimento” e “com-paixão” entre eles, mas domínio.

Basicamente, há duas categorias de fenômenos em contínua relação: os que são próprios do mundo dito interno, psíquico, mental, que é da ordem do simbólico e imaginário, e os concernentes ao mundo chamado externo, social, da ordem do real. Como nascemos em família — e, como vimos, não há outra maneira de conceber seres humanos e propiciar seu desenvolvimento —, essas vivências emocionais advindas do experienciar cotidiano de relações familiares, em relações familiares, acabam por criar uma classe de conteúdos emocionais que são instalados — introjetados — em nosso mundo interno e que recebem o “nome” de família. Tudo o que se refere a tal classe de vivências é armazenado nesse “arquivo” mental. O “objeto” interno, como é denominado pela Psicanálise, estimula as experiências cotidianas de convívio familiar e é estimulado por elas, forja-as e por elas é forjado.

Ainda que em recíproca interação, esses dois mundos não são simétricos entre si. Vale dizer que alterações no mundo externo não são acompanhadas por alterações internas equivalentes. Por exemplo, uma criança, ao ter seus pais separados, não os separa internamente; ao contrário, eles continuam juntos em seu mundo interno, constituindo a subclasse casal, que apresenta, entre outras características, a de ser responsável por fornecer subsídios para a formação de “pares” — inclusive comerciais — no futuro.

Por conseguinte, não obstante suas modificações estruturais, essas organizações continuam existindo no mundo interno dos indivíduos e edificando seu mundo de relações. Estamos sempre-em-relação-com-alguém, dentro de nós. Tais relações podem ser boas ou más, construtivas ou destrutivas, evolutivas ou involutivas, mas estão sempre presentes, sempre atuantes. Nossas figuras internas podem nos fazer boa companhia ou nos aterrorizar e ameaçar. Podem ser justas e virtuosas ou tirânicas e despóticas, mas estão conosco todo o tempo. Da natureza da relação emocional prevalecente presente nessas classes de conteúdos introjetados em tenra idade, dependerá em grande parte o tipo de associação que as pessoas tenderão a estabelecer ou a tolerar. Relações pautadas pela rivalidade serão substrato para associações extremamente competitivas; relações cuja tônica é a cooperação, resultarão em maior propensão para associações respeitosas e produtivas.

Essa “família interna” responde pela construção e manutenção do espaço interno, mental, de relações emocionais. E esse espaço, por sua vez, constrói e abriga o sentimento de pertença, que é composto pelos sentimentos que cada um experimenta em relação ao conjunto e que funda o que posteriormente será reconhecido como cidadania.


3. SENTIMENTO DE PERTENÇA E ETHOS

O sentimento de pertença é análogo ao que Homero chamava de ethos, “morada”. “A casa é a primeira construção e morada, é o ‘corpo do homem’, a medida de seu mundo, oferece as verdadeiras referências de bem-estar e prazer e é guia do espírito [...] A morada é nosso corpo e é maneira de nascer, viver e de morrer. Ser homem significa estar na terra como um mortal, significa ‘habitá-la’.”

Habitamos esse ethos mental, essa morada psíquica. Habitar tal espaço nos possibilita a passagem do caos — o vazio, escuro e ilimitado mundo das trevas — para o cosmos povoado. É esse espaço que garante que possamos desenvolver nossa identidade, que à maneira do deus romano Jano, guardião do universo, o que abre e fecha portas, é bifronte. Com uma face voltada para a frente e a outra para trás, em “vigilância constante, conhecedor do passado e adivinho do futuro”. A identidade nos fornece a convicção de sermos o que somos num mundo de semelhantes e ao mesmo tempo nos diferencia dos outros. Permite que olhemos para dentro e para fora, que nos distingamos com dignidade, sem nos afastarmos dos outros.


4. A IDENTIDADE OBSCURECIDA

Num mundo em que a hegemonia do discurso é substituída pela hegemonia da imagem, a identidade vê-se ameaçada. Pois, no lugar em que se encontravam a análise e a exposição mediatas das idéias e pensamentos, depara-se agora com o aprisionamento pelas imagens, cuja dimensão imediata produz a ilusão de serem elas entidades reais. Todavia, algo parece ser real somente quando há emoções associadas a ele. São as emoções que conferem corpo e realidade à experiência, mesmo a sensória. E às imagens não se atrelam emoções. Quando se desconhecem as emoções, desaloja-se o ser humano, priva-se o ser humano de morada, de identidade, de ethos. E o homem privado de identidade é ser sem rumo, é clone sem alma.

Ser definido pela dimensão imediata engendra uma concepção de mundo com predomínio da busca do prazer e satisfação instantâneos cuja dinâmica tem alcances pouco conhecidos e aquilatados, fomentando o que Mattos, entre outras implicações, descreve como “1) o confisco da noção de futuro, pois este só é convocado para justificar o que se faz no presente, com a substituição da história como espaço da liberdade, intervenção e criação humana, pela confusão entre o possível e o necessário; 2) a ‘lógica’ do efêmero e do descartável em lugar das relações de meios e fins; 3) a renúncia aos conceitos clássico e moderno de racionalidade, liberdade, felicidade, justiça e utopia, transformando-se o tempo presente em presente perpétuo, presente plasmado como tempo único e último, presente sem memória, pura mens momentanea, carente de recordação; os homens perdem o domínio do controle de suas próprias vidas — todo esse horizonte se condensa no lugar da falência do ideário humanista de democracia e cidadania inseparáveis, estas, da vida ética”.

O apego à lógica do tempo presente, à categoria de urgência, não permeada pela seleção, filtragem e arbítrio do pensamento, e que procura respostas cada vez mais rápidas e indolores, não propicia o atendimento genuíno das demandas e necessidades daqueles que sofrem. O que produz é apenas alívio temporário, paliativo, comprometendo a própria noção de identidade. As duas categorias têm de conviver: a do imediato — ação — e a do mediato — reflexão e projeto.


5. AÇÃO JUDICIAL VS. ATUAÇÃO JUDICIAL

Se a Filosofia, por ser “amor à sabedoria”, é o consolo da alma, a Psicanálise, por ser o exame da psique humana, se converte na compreensão da alma.
E os profissionais do Direito lidam com almas que sofrem. Almas delicadas e marcadas por dores inimagináveis.
Enquanto a maioria das ciências busca uma compreensão ou solução para os problemas dos homens, a ciência do Direito busca uma decisão. Esse tipo de apreensão dos fenômenos, e decorrente ação, de certa maneira interrompe e aborta a pesquisa em direção a um desfecho.

Fala-se em conclusão do processo, “solução do conflito”, mas de fato sabe-se que a sentença judicial conclui o processo “intramuros”, no âmbito restrito daquele espaço-tempo recortado de um todo ilimitado, de um tempo que às vezes tem mais de mítico que de cronológico; de um espaço simbólico, mais que real. Pois é o tempo-espaço das emoções. Tempo dos projetos desfeitos, das vidas fracassadas, das esperanças roubadas, a que a solução judicial não põe termo.

O ser humano encontra-se numa situação trágica: a ação e o pensamento não coincidem.
A Psicanálise permite que ação e pensamento se aproximem, diminuindo a defasagem e o desencontro originados da distância entre esses dois planos do viver humano, na medida em que lança luz para uma compreensão mais profunda da linguagem dos afetos.
À “ação-solução” judicial, agrega-se a consideração psicanalítica dos dizeres inconscientes. Letra e melodia de uma mesma música.

A Psicanálise pode contribuir para que os profissionais que precisam decidir a respeito da vida de seus semelhantes possam fazê-lo de tal sorte que estes recuperem a dignidade e o alento.
Ela pode colaborar para que as funções psicanalíticas de todos os envolvidos — profissionais e clientes — sejam restauradas, evitando que as ações se convertam em atuações judiciais.
A atuação, ou “acting-out”, como se denomina em Psicanálise, é uma categoria específica de ação. É uma ação estimulada pela expulsão de conteúdos percebidos como insuportáveis para a mente humana e que, logo, não são elaborados e metabolizados pelo pensamento. Desse modo, em um cenário em que o “acting-out” é soberano, as saídas encontradas não são escolhas; na verdade, não são a resultante natural de um processo de exame, avaliação e deliberação com base no escopo de possibilidades existentes, não representam opções, mas são uma maneira de se livrar o mais rapidamente possível da ansiedade, de escapar ao desconforto gerado pela situação de dor e de incerteza.

E corações feridos que pleiteiam o respeito aos seus direitos, que buscam no Judiciário o reconhecimento e a legitimação de seu estado, condição, autoridade, função etc., tornam-se incapazes, às vezes, de dar um destino diferente ao sentimento de desamparo a que estão violentamente expostos. O tamanho de sua angústia pode ser maior que o da sua possibilidade de contenção. E os profissionais que os rodeiam, convocados a lutar por eles, a ser seus “egoauxiliares”, são presas fáceis na urdidura tecida pelos conflitos inconscientes.

A resposta judicial sozinha não dá conta dessa tarefa.


6. O MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA

Em seu artigo intitulado “Justiça e Mediação Familiar — Uma parceria a serviço
da co-parentalidade”, a juíza francesa Danièle Ganancia expõe os motivos por que considera necessária a utilização da Mediação nos conflitos familiares. Diz ela: “o juiz pode cortar um litígio — com o que isso implica de violência, quando deveria suavizar os sofrimentos... —, mas ele não pode desenlaçar um conflito enquistado de casal, que se desloca para a criança, que a fragmenta, divide, e a põe em perigo psicológico”.
A juíza Ganancia sabe bem do que fala. Não resta dúvida de que está certa e que as razões que apresenta para a aplicação da Mediação são comoventes. Faz-se necessário mudar o rumo do tratamento jurídico dado às separações e a outras questões que chegam ao Direito de Família, do contrário há o risco de fabricar-se uma sociedade alienada constituída de seres insensíveis ou (mais) violentos.

Também é indubitável que a criança deve ser protegida, em razão da sua dependência estrutural. Se amparada e bem conduzida, ela tem grande probabilidade de ser feliz e de assegurar a si mesma relações satisfatórias e construtivas no futuro.
O Judiciário e os profissionais do Direito têm a responsabilidade de fazer de tudo para evitar que se instalem definitivamente no mundo interno da criança constelações de conteúdos emocionais negativos e destrutivos advindos de anos de convivência com brigas judiciais em “seu” nome.
Todos os que estão envolvidos diretamente nos processos ou os que os cercam, ao prevenir litígios, ao evitar que as ações se arrastem de maneira indevida, ao convocar os pais à assunção de sua co-parentalidade, ou ao chamá-los para confeccionar eles próprios os arranjos que mais os atendam, podem propiciar condições favoráveis para o estabelecimento de figuras mentais internas mais benignas, não forjadas na violência e no ódio, mas que sejam talhadas no esforço de cooperação. É uma enorme responsabilidade, psicológica e social.

Contudo, devemos ser cautelosos com tudo-em-nome-da-criança. “O melhor interesse da criança” tem sido muito usado e mal-usado.
O século XIX brindou a Europa com uma revolução industrial que levou mulheres e crianças para o mercado de produção e impôs a urbanização das cidades, ao mesmo tempo que buscava melhores condições de vida e de saúde para seus habitantes contaminados por pestes e doenças. Combinados com outros, esses fatores impulsionaram o desenvolvimento da Medicina e das idéias iluministas de liberdade e valorização da razão e do progresso, sacudindo as normas e preceitos praticados até então. A tradição e a autoridade eram questionadas e desafiadas.

Historicamente, “o bem-estar da criança” ganhou corpo na Grã-Bretanha, para interferir nos direitos do pai sobre os filhos legítimos, direitos que, até aquela época, eram absolutos e considerados naturais. “A história que está implícita [...] no desenvolvimento da lei a respeito de pais e crianças é a de que formulações do princípio do bem-estar da criança têm sido usadas pelas cortes para desafiar os esmagadores direitos dos pais casados e, no final das contas, dar às mães o mesmo status [dos pais]”.

Propiciar a igualação dos poderes masculino e feminino por meio da busca do que é melhor para a criança, nos casos de disputa pela guarda, por exemplo, está em conformidade com as reações ao domínio, muitas vezes opressivo, do homem sobre a mulher, criança e propriedade, herança dos valores romanos que desenvolveram a necessidade do matrimônio e do patrimônio.
Todavia, o ser masculino funcionava, por sua vez, como porta-voz de ideais e prescrições de uma sociedade e de uma cultura que punham ênfase nas instituições e nos grupos em detrimento dos indivíduos. Na verdade, os anseios individuais não eram contemplados. E os movimentos filosóficos, artísticos e científicos atestam a luta pelo ideal, inaugurado já no final do século anterior pela Revolução Francesa, de “liberdade, igualdade e fraternidade”.

Essa tendência para a satisfação e compreensão do ser humano encontra uma das suas maiores expressões com o advento da Psicanálise. Exame e observação da alma, a Psicanálise lança luz sobre o funcionamento e o desenvolvimento da mente, que, ao contrário do que se acreditava naquela época, começavam na mais tenra infância. É nesse momento da história pessoal que condições emocionais adversas podem produzir efeitos indeléveis na formação da personalidade dos futuros cidadãos.
As aplicações e usos dessa disciplina em outros campos do saber, como, por exemplo, a Pedagogia, Antropologia, Sociologia e Direito, entre outros, leva “o melhor interesse da criança” ao seu máximo, com todas as distorções promovidas por transposições às vezes literais.

Noções trazidas pelos estudos psicanalíticos como o resultado negativo de condições traumáticas e da repressão excessiva na formação das crianças, a evidenciação dos efeitos deletérios sobre a constituição da personalidade e desenvolvimento da criatividade de mecanismos coercitivos de educação etc., aliados ao aumento vertiginoso do número de separações conjugais e ao anseio de homens e mulheres por autonomia e liberdade, transformaram a criança em objeto da preocupação exagerada de educadores, advogados, promotores e juízes. A tal ponto que, numa ação de disputa de guarda, por exemplo, pode-se chegar ouvir uma criança para que ela diga com quem prefere ficar, sem maiores considerações a respeito das fantasias relativas a lealdade, medos, traições, vinganças, só para citar algumas, que, em sua maior parte, habitam seu mundo inconsciente.
E, com isso, a principal descoberta de Freud — de que somos governados sobretudo pelo Inconsciente, que esse sistema tem seus códigos específicos de expressão e suas próprias leis a ser desvendadas, e mais, que com a criança não é diferente — não é só pouco absorvida, mas é mal utilizada.

A criança não precisa ter o lugar de privilégio nem ser objeto de preocupação. Ela precisa ter o lugar de Sujeito. Não pode e não deve ser situada como o centro de uma família ou de uma sociedade. O lugar atribuído a ela deve ser de respeito e de confiança recíprocos.

Ela precisa que seus pais se reconheçam mutuamente, mesmo que separados. Ela precisa de adultos que compreendam suas necessidades e não que satisfaçam suas vontades, fazendo tudo o que quer, fazendo tudo em “seu nome”.
O Melhor Interesse da Criança será de fato atendido se o interesse de todos, o bem-estar de todos os que pertencem à família, for atendido.


7. A MEDIAÇÃO

Numa época em que o intercâmbio entre as pessoas e nações e o manejo das diferenças estão na ordem do dia, as atenções voltam-se para o método do diálogo por excelência, a saber, a Mediação.
A Mediação vem se configurando como uma das formas mais exitosas de condução de conflitos. Apesar de ser uma prática muito antiga, documentada por antropólogos como estando presente em todas as culturas e religiões, só muito recentemente surgiu como alternativa válida entre nós.

A Mediação pode ser utilizada em todas as situações em que haja controvérsias.
Portanto, em qualquer situação do convívio humano, como por exemplo, nas empresas, escolas, hospitais, comunidades, nas relações internacionais e sobretudo na família.
Gostaria de trazer uma definição de Mediação, que procura sintetizar as correntes mais aceitas atualmente. A Mediação é: “um método de condução de conflitos, aplicado por um terceiro neutro e especialmente treinado, cujo objetivo é restabelecer a comunicação produtiva e colaborativa entre as pessoas que se encontram em um impasse, ajudando-as a chegar a um acordo, se esse for o caso”.

Pode-se conceber a Mediação como uma transdisciplina, um resultado novo e original, produto do intercâmbio de práticas e de conhecimentos advindos de várias disciplinas e ciências como a Psicologia, Psicanálise, Direito, Teoria da Comunicação, Teoria do Conflito, etc.,

Ela apresenta vantagens importantes em comparação com outras formas de condução de conflitos como a negociação e a arbitragem, pois propicia a retomada da autodeterminação das pessoas com relação às próprias vidas. Fundamentalmente é a isto que a mediação se propõe. Delegou-se demais ao Estado na figura dos tribunais com seus juízes ou mesmo aos advogados. Os mesmos tribunais e juízes estão abarrotados e as pessoas infelizes com sentenças insatisfatórias, que vêm depois de anos de lutas inglórias entre pseudoganhadores e pseudoperdedores.
Tomemos a área de família mais especificamente. É marcante o grande número de separações litigiosas e o não cumprimento de sentenças judiciais.

Lidando com casais nas separações, quer como terapeuta ou como assistente técnica, tem-me chamado a atenção, o quanto as pessoas tentam resolver suas frustrações – provenientes de casamentos malsucedidos – através e brigas e disputas, desconsiderando os próprios filhos que acabam sendo os mais prejudicados. E não é um terceiro idealizado, representado pela figura do juiz, que irá mudar o rumo ou a visão que as pessoas têm de suas vidas.

A título de exemplo: a Associação Americana de Mediação, realizou uma estatística nos tribunais dos Estados Unidos em 1997, e constatou que nos casos de divórcio, nos quais a guarda dos filhos é outorgada à mãe – o que representa a maioria dos casos –, 85% das sentenças em ações de alimentos e guarda não são respeitados.

Muitas hipóteses poderíamos levantar para explicar tal ocorrência, mas o essencial é pensarmos que, seja por qual motivo for, as sentenças não atenderam às reais necessidades das pessoas envolvidas, suas prioridades e interesses, pois se o tivessem feito, teriam sido mais consideradas!

O mediador é um facilitador do processo de retomada de um diálogo truncado. Ele não interfere diretamente, mas ajuda as partes – no caso de processos judiciais –, ou as pessoas que se encontram em situação de disputa, a encontrar elas mesmas, as saídas e alternativas que mais lhes convêm. Por meio do uso de técnicas específicas, ele restabelece as ligações que foram rompidas pela má condução ou exacerbação de um conflito. É um catalizador da comunicação.

A mediação é um procedimento realizado por profissionais capacitados para tal, que podem ser psicólogos, advogados, assistentes sociais e outros. O objetivo, como vimos, é facilitar o diálogo; é colaborar com as pessoas e ajudá-las a colocar suas necessidades, esclarecendo seus interesses, estabelecendo limites e possibilidades de cada um, tendo sempre em vista as implicações a curto, médio e longo prazo de cada decisão tomada.

Por ser um procedimento não adversarial e voluntário, é geralmente realizado fora dos Tribunais, com a vantagem de desafogar o Poder Judiciário.

Desse modo, a probabilidade de as sentenças judiciais serem cumpridas, aumenta significativamente, pois os acordos quanto a questões espinhosas como alimentos, guarda e convivência com os filhos, provêm do trabalho das pessoas, são construídos por elas e não impostos por uma terceira pessoa de fora e estranha. Tudo isso se traduz não só em economia de tempo e de recursos materiais, mas também e principalmente, em uma redistribuição mais adequada de recursos emocionais.

A Mediação representa ainda, um instrumento valioso de prevenção da violência doméstica, depressão infantil e delinqüência juvenil, tão comuns nos litígios.

Após a realização do procedimento, quando se chega a um acordo, este pode ser dado a um advogado que lhe dá a forma legal, a fim de ser homologado pelo juiz.
Cabe ressaltar que, mesmo quando o mediador é um advogado, ele não advoga para nenhuma das partes. Ele é um personagem neutro, no qual as pessoas depositam sua confiança, pois é escolhido por elas.

Um conflito mediado pode ser utilizado a serviço da relação e do crescimento, pois o impasse é substituído pelo diálogo.
Todas as pessoas precisam de quem as ame respeitosamente, de quem defenda seu direito de existir como seres incompletos, imperfeitos que são, e de quem defenda sua sanidade mental.

A Mediação enriquecida pela Psicanálise tem a oportunidade de restabelecer os lugares simbólicos de cada um dentro de uma família ou de uma organização, já que as funções só podem ser bem exercidas quando os lugares estão claros e assentados. Um pai só é pai porque há uma mãe e um filho. O mesmo se dá com a mãe e o filho. Deve haver reconhecimento mútuo entre os componentes da família, independentemente de sua estrutura, para que cada um possa ser o que é e desempenhar bem seu papel.

Em outro artigo , examino uma modalidade específica de guarda, a guarda compartilhada. Trata-se de uma modalidade ainda pouco praticada no Brasil, porém muito utilizada em países como a Inglaterra, Estados Unidos e França onde, por exemplo, "desde a lei de 1993, a autoridade parental é exercida pelo casal, a quem, divorciado ou não, compete regrar, determinar, os detalhes da vida cotidiana. O juiz, que intervém visando ao interesse da criança, deve evitar de desacreditar os pais".

Esse tipo de guarda pode atender mais satisfatoriamente às necessidades da família como está configurada atualmente. Para se ter uma idéia do que isto representa, na Inglaterra hoje, não se utiliza mais a palavra "guarda". Fala-se de "responsabilidade parental conjunta".

A necessidade de se ter funções e atribuições bem claras e estabelecidas, é, paradoxalmente, mais verdadeira ainda em famílias de pais separados e nas novas configurações familiares. Cada um tem de ter lugar legitimado, pois o apoio que cada um dos membros pode dispensar ao outro é menor. A base de sustentação também é sentida como mais frágil por todos, o que pode levar as pessoas, em seus lugares de representação simbólica, a assumir uma importância exagerada, ou a ser negligenciadas, postas de lado. No primeiro caso, essa problemática aparece, com freqüência, sob a forma de crianças ou adolescentes ditadores, irascíveis ou com problemas de conduta, que outorgam as próprias leis, enquanto no segundo observa-se pais ausentes e, nas crianças, depressão, insegurança ou competição exacerbada por sentirem constantemente que seu lugar está ameaçado.

Salientar as peculiaridades e discriminar as diferenças entre, por exemplo, conjugalidade, paternidade e parentalidade, de acordo com cada caso em particular, distinguir funções, papéis e atribuições de cada um, é algo que a Mediação, com os aportes da Psicanálise, pode fazer.

Dessa maneira, os três principais aspectos da família – conjugal, parental e tutelar –, podem ser diferenciados entre si. Pois, em uma separação, o aspecto conjugal se rompe, mas o aspecto parental, das funções materna e paterna, e o tutelar, dos projetos e da noção de futuro, devem ser preservados. Assim, o genitor que não mora mais com os filhos, não precisa ser transformado em uma simples “visita”, fato que traz repercussões sérias, afetando gravemente a consecução dos aspectos parental e tutelar.

Como mostram estudos canadenses , a alienação parental decorrente da aplicação do “direito de visitas” em uma só mão – a do direito – e não em mão dupla – a do direito e do dever –, promove o afastamento paulatino comumente do pai, que não só deixa de visitar os filhos, como freqüentemente deixa de honrar suas obrigações financeiras.

A mudança de paradigma promovida pela aplicação da Mediação, pode conduzir a que, o que antes era direito de visitas, seja convertido em direito de convivência, com tudo o que isto implica de aumento de qualidade da relação emocional entre pais e filhos.

8. CONCLUSÃO


As configurações familiares atuais que, promovem mudanças na distribuição de
papéis e diferentes expectativas em relação a cada membro da família, são algumas situações em que a aplicação da Mediação é indicada.

Para exemplificar essa aplicação, tentei examinar como, não só a criança, mas todos os componentes da família em crise se beneficiam da discriminação que a Mediação propicia.

Talvez ao esclarecer e redistribuir os lugares simbólicos, tanto a Psicanálise como a Mediação possam provocar mal-estares. Sobretudo no sistema composto pelos profissionais que cercam a família e que são compelidos também a repensar seus lugares e atribuições. Deparar-se com a incerteza e a insegurança que a pesquisa estimula é algo que promove resistência.
Como dizem Maturana e Varela, “o conhecimento do conhecimento compromete”, e isso equivale a dizer que é preciso fazer algo com o que compreendemos. É preciso fazer um uso responsável do conhecimento que se obtém do atendimento de pessoas em conflito e que manifestam sua dor nas inúmeras ações que chegam ao Judiciário. Às vezes, é a única maneira de elas agirem e serem ouvidas.

Ao lançar luz sobre os conflitos humanos, a Mediação, aliada à Psicanálise, nos dá a possibilidade de conhecer facetas e alternativas que de outra forma dificilmente conheceríamos. Tira-nos do plano do tempo imediato e da dimensão de urgência do “acting-out emocional”. Permite-nos restituir o ethos e a ética nas relações humanas e fornecer condições mais dignas àqueles que se dirigem ao Judiciário para ser reconhecidos.



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