Ser Pai

O QUARTO (CINCO MINUTOS)

Crônica: O Quarto (cinco minutos).

O Quarto (cinco minutos).

Chovia , lentamente, na rua e no peito;
Chuva fria, peito quente de dor e tristeza,
leito de lágrimas e solidão, desamente dissipadas,
dia-a-dia, no peito e na face, leito inerte do sentimento.

Rareando a chuva, da rua, enxugando-se aos poucos a do peito,
espera ele , paciente , o tempo, a hora.
Aguarda arrrumando os cômodos da casa, o quarto, e o leito, peito.

Chega o momento, pelo mover das horas,
minutos hirtos, de espera aflita e paciente;
finalmente chega o estranho, o especialista, o inspetor, que avalia, olha.
Analisa cômodo a cômodo, o âmbiente, mobília, roupas.

Rapidamente observa, o tempo urge e há muito a relatar , o quarto.
Móveis pequenos, brinquedos velhos, livros de estórias, o cheiro;
intrigado, entreolha o anfitrião, o analisado, o objeto do estudo, que o recebe, prostrado.

Com clara curiosidade, questiona, investiga, escarafuncha o motivo, que,
dia-a-dia, justifica o existir do quarto, memorial a quem não mais o habita.
Seria, com certeza morbidez, solidão, amargura, ilusão;
precisa-se justificar, mesmo sabendo o inspetor que a tempos ninguém usa o quarto, pois então, existe em vão.

Com sorriso tímido, franco, confirma o anfitrião, o analisado, o desuso do quarto;
anos separado de seu dono, anos longe das risadas e brincadeiras.
É desconfortável, mas enfim admite a verdade que mantém o cômodo, o motivo: preguiça.

Neste instante, entre confusão e ira, curiosidade e indignação,
altera-se o humor do inspetor, inflamando-se-lhe a face e a fala, diante do desprezo que crê no anfitrião .
Do descaso, desprezo, que seguro constata e relata; preguiça, do analisado , sem dúvida é motivo suficiente ,forte e aparente, para que o dono do quarto dele se fazer distante, ausente.

Como , não entende, poderia o anfitrião, diante de tão encarnecida disputa,
anos a fio, no limite do extremo, admitir com raso sorriso ser a preguiça, poluta,
que o move, histericamente (relata),a manter o quarto.

Rindo inocentemente, mas nervoso, ansioso, olhou o anfitrião ao inspetor,o especialista,
nos olhos, e disse-lhe com firmeza : "Isto é apenas um cômodo, móveis e objetos, matéria ; seu dono,
creia, não vive, nem viverá nele. " ; deixando atônito o estranho, que já o despreza.

Calado, sem fala ou reação, relatando apenas, levantou-se bruscamente da poltrona o inspetor,
lugar onde se sentara para questionar o anfitrião, o analisado, aquele senhor.
Mais ágil, o anfitrião pediu-lhe calma e mais tempo, compaixão, negados com fervor.

Resistindo firmemente, o inspetor seguiu para a porta,
mas o anfitrião foi mais firme ainda, mais ágil.
Postou-se à porta, firme e inabalado, calmo disse: "Peço-lhe, com pureza d´alma,
que me deixe explicar-lhe, porque ali ninguém mora."; isto sei eu disse-lhe o inspetor, em resposta.

Constrangido, disse mais o inspetor : "O imponderável não se explica,
ainda mais sua preguiça, como sou paciente, e humano, creio que em nada levará ,
mas mesmo assim sendo, dou-lhe cinco minutos mais de meu precioso tempo, como presente.", e pôe-se a escrever.

Respirando fundo, e aliviado, agradeceu o anfitrião: "Explico-lhe, sem demorar, minha preguiça,
e o motivo pelo qual ali, no quarto, não se espera jamais, que venha o dono do mesmo morar;
seu dono era menino pequeno, quando aqui vinha, hoje mais velho, nada ali lhe servirá; seu dono,
era alguém que gostava de ali estar." disse, emocionado.

Seguiu, firme: "Abro a camisa e lhe mostro meu peito, leito de meu coração, o quarto verdadeiro de meu filho;
olhe meu rosto e veja as rugas, lembrança das noites insones, em que velei seu sono, em que rezei por sua
saúde, em que pedi perdão a Deus por meu pecados, e olhei por meu filho, ainda que dele distante.", afirma, crente.

Chorando continuou, com dificuldade : "Mostro-lhe meus cabelos, brancos, ralos,
carcomidos pelo tempo que espero em ter comigo meu filho;mostro meus braços,
que as vezes adormecem ansiando o abraço que não vem, e principalmente minhas lágrimas , purga de minha tristeza." ,diz.

Rouco, continua: "Aqui, sem pudor e sem culpa, são o quarto e os pertences de meu filho que mantenho zeloso.
Por muitos anos conservei o quarto que viu o senhor, com esmero , cuidado, esperança, calor;
hoje o conservo , mais alimento meu peito, meus cabelos e meus braços.", segue com dificuldade.

Controlando-se, tenta: "Mas logo percebi, que não era ali, no quarto, que habitava meu filho.
Morava em meu peito, leito de meus sentimentos; em meus olhos, testemunhas vivas de sua bela imagem,
seus trejeitos; em meus braços, e meus sentidos, que ainda o têm como quando não mais o pude , em contato.

Abri meu peito, como lhe abro a camisa, e nele cravei mais fundo meu amor, minha saudade; fiz de minhas lágrimas,muitas, a chuva que regas as mais belas flores, os meis verdes bosques, os mais puros rios, pelos caminhos onde meu filho passa.
Não são mais o símbolo da minha tristeza, mas o alimento de minha alegria, e da esperança.

Meus cabelos, senhor, não os perdi, nem os vi branquearem, os melhores doei-os para tecer cobertores e tapetes,para aquecer com meu amor a meu filho, mesmo que à distância.
Mesmo que somente em pensamento, ainda que em querer.

Assim, senhor, justifico de minha forma simplória, sincera, o motivo de minha preguiça: a espera.
Dias, meses, anos, até saber que ele não mais me quer ver, ou assim acredita sentir;sofri, penei, lutei, esperando, e hoje luto amando, em etéreo limbo.Como pode ver , a preguiça, senhor, é minha resistência e minha esperança, pois mantém vivo o símbolo dos anos perdidos.

Mas hoje percebo, que o quarto nada mais é , friamente,
que objetos inertes ,dormentes, estátuas;
totens criados pela inquidade, pela tristeza, maldade.

Amor é que, em verdade, é o quarto de meu filho; onde viverá sempre, onde nunca morrerá.
O quarto não é nada, senão a espera e a preguiça, santuário;
é o símbolo que mal espelha o que sinto, é a minha forma interior de lutar, de perseverar,
nunca será usado, mas só sairá daí pelas mãos de meu filho.

Lhe digo, esta é a parte minimamente visível, que mantenho ,à vista,
do que tenho em mim, e do que é meu coração, cheio de amor , alegria e esperança.
Mantenho para todos entendam ou acreditem, no que por meu filho sinto, algo invisível e indescritível.

Cinco minutos se passaram, findaram-se, e lhe disse, com franqueza, meus erros e motivos;
a eternidade não me bastaria, para fazê-lo entender a fraquza de quem me priva, de perder a preguiça,
e arrumar este quarto; me priva ao final , de abrir meu peito, desfazer este quarto e arrumá-lo novamente,
criando nobre leito, por justiça, de meu amado filho.

Por isso me decidi, que não me privam a preguiça, apenas as mãos dele hão de arrumar o quarto, que ele nunca mais usou." , moveu-se diante da porta, abrindo-a e deixando o especialista passar;
este, com a mão no relatório, a anotar, parou de escrever e enxugou as lágrimas e se foi sem nada falar.

São Paulo, 02 de maio de 2.004.

Luís Eduardo Bittencourt dos Reis
Equipe Permanente PaiLegal
www.pailegal.net

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