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PLANEJAMENTO FAMILIAR CRESCE DE IMPORTÂNCIA NO DIREITO

Planejamento familiar cresce de importância no Direito

Mulheres mais independentes economicamente, maridos mais presentes na vida dos filhos, aumento dos acordos pré-nupciais, e a crescente preocupação com o regime de bens no casamento e com a organização da empresa familiar. Essas são as novas configurações sociais e culturais amparadas pelo novo Código Civil que trouxe muitas mudanças importantes como o reconhecimento dos direitos do cônjuge como herdeiro.

A família depois do novo Código Civil é o tema da entrevista concedida à revista Consultor Jurídico pela advogada especializada em Direito de Família Renata Mei Hsu Guimarães. O cônjuge, na qualidade de herdeiro, gerou um grande impacto no planejamento de empresas familiares. Como ele pode herdar o controle societário dos negócios da família do outro cônjuge, aumenta a possibilidade de as sociedades trocarem de sobrenome.

“Empresa e família é um binômio muito delicado e quando não organizados, quebram os dois: a empresa e a família. Determinadas famílias desejam que o cônjuge fique bem assistido, que tenha imóveis e ativos financeiros, mas não querem que participe do controle da empresa familiar”, afirmou Renata na entrevista que teve a participação do editor executivo da revista Maurício Cardoso e da repórter Adriana Aguiar.

Segundo Renata, a procura por contratos pré-nupciais e as consultas sobre os tipos de regimes matrimoniais antes do casamento cresceram muito nos últimos anos como conseqüência da evolução das relações sociais e culturais do país. “Cada vez mais eu tenho recebido clientes e consultas anteriores ao casamento para discutir regime de bens”. A advogada acredita na eficiência da separação total de bens para evitar o famoso “golpe do baú”: “o regime da separação total entrega ao casal a condição de formar o seu patrimônio da maneira que desejar”.

Na complexidade da vida em família, na opinião de Renata cabe até mesmo uma responsabilização com danos morais. “O dano moral cabe tanto no casamento civil quanto na união estável. No casamento civil, por exemplo, em que um dos cônjuges é absolutamente irresponsável e mantêm várias outras mulheres e relações sem usar preservativo. Contrair uma doença sexualmente transmissível e não comunicar o cônjuge, gera indenização por danos morais”.

Renata Guimarães, formada pela PUC de São Paulo, é sócia do escritório Machado, Meyer, Sendacz e Opice Advogados há 16 anos. É responsável pela parte de família e sucessões, que atende tanto a parte contenciosa, abrange separações, divórcios, inventários, pensões, disputas de guarda, quanto a parte consultiva, que é a organização da empresa familiar. Renata tem 43 anos, que não aparenta, e é mãe de dois meninos de 19 e 16 anos e uma menina de 12 anos. É separada do marido e se dá muito bem com ele.

Leia a entrevista

ConJur — O que mudou em relação à família com o novo Código Civil?

Renata Guimarães — Uma das grandes mudanças com o novo Código é a possibilidade de alterar o regime de bens do casamento. Pelo código anterior, o regime de bens era absolutamente imutável. Antes só era possível mudar o regime de bens com a separação do casal ou o divórcio. No novo Código há uma previsão específica de alteração do regime de bens.

ConJur — O novo Código privilegia muito mais as relações afetivas do que as econômicas?

Renata Guimarães — Não. Com relação à união estável, por exemplo, foi o inverso. A questão da união estável da companheira era uma construção jurisprudencial. Havia poucas leis que regulamentavam a matéria. Em 1994 veio uma lei prevendo uma série de direitos da companheira na união estável. Depois veio a lei de 1996 e a companheira ganhou pensão alimentícia, partilha de bens, direito de habitação, usufruto, comunhão parcial, enfim, um conjunto de direitos superior ao da mulher e do marido. Na época a imprensa se referia a ela como a “lei piranha”. Com o novo Código, esses direitos da companheira foram reduzidos e o do cônjuge, de certa forma, elevados. Tanto é assim, que o cônjuge figura na ordem legal de recebimento da herança e a parceira não. O companheiro não é um herdeiro necessário. Ele tem direitos sucessórios, mas muito diferenciados do cônjuge.

ConJur — O que caracteriza uma união estável?

Renata Guimarães — A lei de 1994 dizia que união estável era caracterizada por cinco anos vivendo sob o mesmo teto ou pela existência de filhos. Depois veio o seguinte: união estável é uma união pública, contínua, duradoura, com o objetivo de constituir família. Uma situação delicada, porque são todos critérios subjetivos. E o Código que entrou em vigor em janeiro de 2003 repetiu esses critérios.

ConJur — Como o novo Código disciplina a união estável?

Renata Guimarães — O código regulamenta de forma precária, porque os artigos da união estável geram muita discussão: direito de habitação, deveres entre companheiros, a própria definição de união estável, a parte de sucessão. Na questão da união estável o código foi pobre, poderia ter regulado a matéria de outra forma. Gera uma série de dúvidas, por exemplo, se o companheiro é herdeiro necessário ou não. Eu acho que há artigos no código que deixam suficientemente clara a disposição de que o companheiro não é herdeiro necessário como cônjuge nessa situação, mas poderia ter disposições no novo código relativas a união estável muito mais claras que efetivamente fornecessem a resolução de determinadas situações.

ConJur — E a união homossexual? Mudou alguma coisa?

Renata Guimarães — O código claramente afasta a união homossexual. Você tem uma jurisprudência mais forte no Rio Grande do Sul. Quando é definida a união estável a lei diz “é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher”. Se é correto, se não é correto, isso é uma outra situação. A lei claramente afasta. Tem outras formas patrimoniais de lidar na medida em que a lei é taxativa isolando o homem e a mulher como figurantes de uma união estável.

ConJur — E quando caso de homossexuais pedindo união estável chega nas mãos da Justiça, o que acontece?

Renata Guimarães — O juiz pode julgar a ação carecedora. Você pode discutir outra coisa, como, por exemplo, a constituição de uma sociedade de fato. Como se fossem duas pessoas unidas nos negócios ou nos interesses comerciais. Para a relação homossexual, a semelhança é mais ou menos um estágio de jurisprudência de companheiros em que se sustenta uma sociedade de fato. Eles trabalharam juntos na mesma empresa, eles compraram uma área rural e desenvolveram essa área, eles geraram direitos de sócios de fatos, de acordo com a contribuição de cada um. Assim o que pode haver é uma discussão segundo a jurisprudência e o que se entende na sociedade de fato.

ConJur — Cabe dano moral nas relações familiares? Em que situações?

Renata Guimarães — Essa é uma fonte muito interessante. Eu acho que o dano moral cabe tanto no casamento civil quanto na união estável. Por exemplo, no casamento civil, em que um dos cônjuges é absolutamente irresponsável e mantêm várias outras mulheres e relações sem usar preservativo. Contrai uma doença e contamina o outro cônjuge sem que o outro saiba. Houve um caso de um casamento de mais de 20 anos em que o ex-marido no auge do litígio foi internado as pressas. Eu até achei que a internação era uma forma de evitar a citação para pensão alimentícia e o médico diz aos filhos que o pai foi internado por causa de HIV, doença que ele tinha há alguns anos. É uma fatalidade ter contraído, mas saber disso e não comunicar o cônjuge, eu acho que gera indenização por danos morais. Existem outras situações, como de agressão física, e que são muito mais freqüentes do que se imagina em todos os níveis. Existem situações de abuso dos filhos, de abandono moral, que geram indenização por danos morais.

ConJur — Recusa de sexo é motivo de danos morais?

Renata Guimarães — É débito conjugal. Na realidade, o casamento é um contrato civil. O que diz o contrato civil do casamento: dever de coabitação, o dever de fidelidade, o dever de respeito, estima, o dever de assistência financeira, moral e o débito conjugal. O débito conjugal é exatamente a obrigação de manter relações sexuais, mas é terrível provar isso. Em 20 anos de profissão eu tive um caso. Por que como é que se prova o que acontece em quatro paredes. Porque toda vez que se fala em faltas do casamento, culpa do casamento, processo e sentença de culpa obviamente parte de uma prova. Como é que se prova a falta de relações sexuais. Nesse único caso que eu tive, o ginecologista testou, a empregada testemunhou, mas é uma prova dificílima.

ConJur — Existem muitas coisas difíceis de se provar não?

Renata Guimarães — A separação litigiosa que pressupõe um julgamento de culpa tem uma prova delicada. Provar adultério não é uma prova simples. A gama é muito aberta. Abandono de lar não é simplesmente sair de casa. É uma visão muito simplista. Mas tem casais que o marido sai de casa, mas ele janta duas vezes por semana em casa. Ele lava a roupa ainda na casa, isso não é abandono de lar. Abandono é o ato literal de virar as costas, de financeiramente não favorecer, de não visitar os filhos, mas a prova do processo é delicada nesse sentido. A separação litigiosa pressupõe uma prova muito delicada.

ConJur — O adultério é fácil de comprovar?

Renata Guimarães — O adultério significa ser casado e manter relações sexuais com terceiros. Então, a rigor, se você prova que entrou no motel e saiu de motel, você não prova adultério. Você pode provar injuria grave, ofensa ao dever de respeito, estima, abandono moral. Adultério é algo específico. Para efeito da separação, o adultério se caracteriza tecnicamente quando alguém engravida na história, ou tem um flagrante. Provar adultério é tão difícil que se criou a figura do quase-adultério que é toda situação amorosa na qual você não prova a relação sexual, mas prova o envolvimento amoroso. Situações como entrar e sair do motel, um abraço, um beijo amoroso. A figura do quase-adultério é tecnicamente qualificada como injúria grave e abandono moral, mas não é adultério. Só que as conseqüências jurídicas são as mesmas.

ConJur — O código antigo era bom?

Renata Guimarães — Era um código muito bem escrito. Como documento legal, coerência jurídica, eu acho um documento mais coeso que o atual. Óbvio que ele refletia uma determinada época, numa sociedade. Você podia anular o casamento se a mulher fosse deflorada. Existia o regime dotal [regime no qual se previa a entrega de determinados bens devidamente descritos e avaliados, da mulher ou de seus ascendentes, o chamado dote, para serem entregues à administração do marido, a fim de com eles obter os meios necessários para sustentar a família]. Era uma outra configuração. O código atual é mais moderno, mas, enquanto lei, na sua redação, na sua sistemática, o código anterior é uma belíssima lei e muito superior ao atual.

Conjur — Uma das principais alterações do novo código é a questão do cônjuge na herança. Como ficou isso?

Renata Guimarães — Uma das principais alterações do novo código é a inclusão do cônjuge como herdeiro. Existem duas formas de distribuir a herança quando uma pessoa falece: uma é a lei que estabelece, existe uma ordem legal para dividir a herança; a outra é o testamento. O novo o código colocou o cônjuge como herdeiro à semelhança de um filho, em determinados regimes de bens, não todos. No caso de uma família com três filhos, o cônjuge é tratado como se fosse um quarto filho.

ConJur — Em qual regime o cônjuge está englobado como herdeiro em igualdade de condições com os filhos?

Renata Guimarães — No regime de separação total convencional, no de comunhão parcial que é o regime legal, e o regime de bens que o Código criou que é o de aqüesto. E também quando o cônjuge concorre com o ascendente, com os pais com os avós, qualquer que seja o regime de bens.

ConJur — E a comunhão universal?

Renata Guimarães — O Código entrou em vigor em 1917. Até 1977 ele dizia que o regime legal era o regime da comunhão universal de bens. Se a pessoa entrava em um cartório para casar e não ressalvava ou não optava por outro regime, casava na comunhão universal de bens, que transforma todos bens dos cônjuges em uma massa única, comum. Com a lei do divorcio em 1977, institui-se como regime legal, a comunhão parcial de bens, que tem particularidades super interessantes. E o código novo afirmou a comunhão parcial como regime legal.

Conjur — Quando você faz um testamento, qual é a situação?

Renata Guimarães — Em um testamento, quando a pessoa morre, 50% é o que se chama de parte legítima, reservada aos herdeiros necessários, e os outros 50% é o que se chama de parte disponível. Como o próprio nome indica, a disposição é totalmente aberta. Você deixa para um filho, para um sobrinho, ou para um terceiro sem nenhum vínculo. A destinação desta parte fica a cargo única e exclusivamente do testador. Antigamente 50% do patrimônio era destinado aos filhos e aos pais. Pela lei anterior, quem não tivesse filhos e pais e fosse casado podia dispor como bem entendesse de todos os bens. Como o cônjuge não era um herdeiro necessário, o outro cônjuge, ao morrer, poderia deixar cem por cento do patrimônio para qualquer pessoa. Hoje isso muodou. Conheci uma situação em que uma moça muito jovem perdeu os pais e herdou tudo o que eles tinham. Ela era casada em separação total de bens e um ano depois ela morreu. Não teve filhos e o cônjuge dela herdou toda parte que ela havia recebido dos pais. E mesmo que ela fizesse um testamento, 50% dos bens teriam que necessariamente ser do cônjuge, e os outros 50% ela poderia destinar para o irmão, para o sobrinho, o que fosse.

Conjur — Como funciona a comunhão parcial de bens?

Renata Guimarães — Constituído o casamento, dali para frente, o patrimônio onerosamente constituído compõe um acervo comum, cuja titularidade não reflete necessariamente a propriedade.

Conjur — Como assim?

Renata Guimarães — Um determinado imóvel pode estar exclusivamente em nome de um, mas se ele foi construído ao longo do casamento sem outras origens. Pelo regime de comunhão de bens, ele é 50% de cada um. E há também o que se chama de bens particulares que não se comunicam no regime da comunhão parcial. São bens que cada um tinha antes do casamento. As heranças e as doações recebidas na vigência do casamento também não se comunicam. Mas há outra característica na comunhão parcial que costuma gerar alguns questionamentos. Não há dúvida que bens anteriores, bens herdados, antes ou depois do casamento, doados são exclusivos daquele que os tenha ou que os recebeu. Só que as rendas desse patrimônio recebidas ao longo do casamento se comunicam. Se você herda uma sociedade depois de dez anos de casado, essa sociedade é exclusivamente sua, mas os lucros, os dividendos recebidos na vigência do casamento são considerados comuns.

ConJur — Uma pessoa que sai de casa, não se separa no papel e arranja uma namorada. Essa namorada pode ter direito a alguma coisa, tem que provar que morou junto?

Renata Guimarães — O novo código prevê o seguinte: se você tem dois anos de separação de fato, pode haver o rompimento do regime de bens. Só que se o cônjuge inocente quiser, ele pode sustentar a continuidade do regime de bens. Então, na hipótese de um casal casado sob o regime da comunhão universal com uma massa única de bens se separar de fato, de comum acordo, ninguém é culpado, depois de dois anos há o rompimento do regimento de bens. Ocorrendo uma união estável posteriormente, não namoro, mas se houver união estável com as conseqüências patrimoniais, pode gerar formação de um outro patrimônio. Então, de fato, há uma confusão patrimonial, mas é uma hipótese muito específica. Muitas vezes há o rompimento fático do regime e a formação de um outro acervo.

ConJur — Quais as vantagens do regime de separação total de bens?

Renata Guimarães — Eu acho que o regime da separação total entrega ao casal a condição de formar o seu patrimônio da maneira que desejar. Evita “o golpe do baú”, enfim, a comunicação patrimonial. E inversamente do que faz supor o senso comum, ele impõe uma confiança entre os cônjuges maior do que os outros regimes. Porque é possível haver desvios, é possível haver uma formação exclusiva. Pense numa separação de um casal unido há mais 30 anos em separação total de bens, 100% do patrimônio está em nome de um, e nada no nome do outro. E não tem partilha na separação total. A titularidade reflete a propriedade. Mas se há um dialogo, se há um equilíbrio entre o casal, a cada aquisição eles podem conversar o que eles desejam fazer. Por exemplo, na comunhão parcial, se são comprados quatro flats, metade de cada flat é de um cônjuge. Se você tem uma aquisição individual pode distribuir desde que você privilegie e respeite a igualdade entre os filhos. Aquele que se casa em separação total de bens e vem depois a se separar pode discutir guarda de filhos, visita, pensão alimentícia, indenização por danos morais, o que for, mas não discutie partilha. Podem fazer um acordo tranquilamente.

ConJur — O que significa aqüestos?

Renata Guimarães — Aqüestos são os bens adquiridos na constância do casamento. Enquanto você está casado, toda a contabilidade é de separação total, o patrimônio é individual de cada um, as dívidas não se comunicam, todo o tratamento é de separação total de bens. Quando há uma partilha, e fatalmente haverá, a regra contábil é da comunhão parcial. Se esse acervo fosse comum, cada um deveria ter, por exemplo, R$ 1 milhão em patrimônio em seu nome. Mas vasmos supor que um tem R$ 1,3 milhão e o outro tem R$ 700 mil. A diferença são os R$ 300 mil. Aquele que tem os R$ 700 mil tem direito a reposição que é feita como em uma divida comercial: os bens continuam da titularidade exclusiva, não há comunicação de dividas, mas cria créditos e débitos no momento de partilha para serem recebidos como patrimônio. Por que eu acho que é complicado? Porque a partilha acontece nos piores momentos da vida: ou de inventario porque faleceu alguém, ou de separação e divórcio. Agregar a isso uma contabilidade é extremamente complicado, é agregar sofrimento. É um regime bastante razoável com regras muito equilibradas, mas que eu acho que na prática provoca um desgaste muito grande.

ConJur — A senhora notou uma demanda maior no escritório, de pessoas preocupadas com relação aos bens, que antes de casar vão lá fazer consulta para saber qual regime é melhor?

Renata Guimarães — Essa demanda tem sido crescente, mas eu acho que não é em virtude do novo código. Ela já vinha de uma forma crescente. Eu acho que ela é própria da evolução das relações sociais, tem o aspecto cultural. Cada vez mais eu tenho recebido clientes e consultas anteriores ao casamento para discutir regime de bens, em que eu explico cada um dos regimes de bem, qual é a opção, porque da opção.

ConJur — Qual você recomenda?

Renata Guimarães — Recomendar genericamente um regime de bens é complicado, porque você tem caso a caso. Eu gosto da separação total de bens desde que haja equilíbrio entre o casal, haja a possibilidade de diálogo. Precisa haver a oportunidade de conversar cada aquisição. Se você tem um cônjuge totalmente alienado, desfavorecido e um outro profundamente agressivo, que teve experiências familiares negativas, provavelmente vai se um caos a separação total. A procura mais freqüente são situações em que ambos trabalham, tem preocupações patrimoniais, tem preocupações com os próprios negócios.

Conjur — O que significa pacto antenupcial?

Renata Guimarães — É um entendimento anterior ao casamento para escolha de um regime de bens diverso do legal à época. Tem aumentado muito. Até porque, imagine a situação: moraram juntos há seis anos e vão se casar. São duas situações jurídicas: uma é a união estável, a outra é casamento civil. Se depois eles se separarem, o que acontece? Na realidade tem que haver duas ações. Uma de separação do casamento e a outra de dissolução da união estável anterior, porque pode ter havido formação patrimonial. O pacto nupcial entra aí para quitar, fechar e distribuir os bens da união estável e pactuar o casamento para frente. Assim fica resolvida uma situação pretérita de união estável e o ajuste do casamento para frente. Esse não é o foco do pacto, mas pode conter essas disposições.

Conjur — Em que aspecto o novo Código Civil impactou nas relações familiares?

Renata Guimarães — Houve um grande impacto no que diz respeito a planejamento familiar e sucessório. Porque nos últimos cinco anos, tem crescido muito a preocupação com a organização da empresa familiar. O Brasil tem um número muito grande de empresas familiares. Tem uma origem cultural na empresa familiar.

Conjur — E o que significa o planejamento familiar?

Renata Guimarães — O planejamento familiar societário, sucessório une três áreas: a parte de família e sucessões, a parte societária e a parte tributária. Empresa e família é um binômio muito delicado e quando não organizados, quebram os dois: a empresa e a família. Portanto, o planejamento passa por testamentos, por doações; por regulamentar as uniões estáveis para que os dividendos não corram para fora; criar testamentos para que os filhos tenham o controle das empresas. A hora que o cônjuge se tornou herdeiro, por exemplo, não é o caso de excluir o cônjuge ou de impedir que ele receba patrimônio, mas providenciar para que ele receba patrimônio que não seja a empresa familiar. Ele pode receber imóveis e ativos financeiros. Muitas vezes, o patriarca daquela família quer que a sua empresa fique exclusivamente com os filhos, com os netos, bisnetos. Há uma linha de consangüinidade dentro disso. Deseja que o cônjuge fique bem assistido, com imóveis, com ativos financeiros, mas não quer que participe do controle da sua empresa. A mudança na destinação da herança pode trazer conseqüências muito graves. Empresas cujo planejamento já estava de alguma forma estruturado sofreram uma grande revisão com o novo Código.

Conjur — Por que eu devo ou não devo fazer um testamento?

Renata Guimarães — A medida do testamento é se você deseja ou não as conseqüências legais. Eu vou lhe dar um exemplo. Imagine um caso: uma pessoa que tem uma única empresa, resolveu colocar nessa limitada todos os seus bens, os bens pessoais, os gerados pelo negócio, tudo. Ele é casado e tem um filho de 40 anos que sempre trabalhou com ele e é ativo na empresa da família. Esse senhor dono dessa empresa terminou o casamento, teve uma namorada e resultou desse relacionamento passageiro uma filha menor de idade. Termina o caso e o dono da empresa casa-se novamente com outra moça no regime de separação total de bens. Faleceu. Não deixou testamento. Pela lei anterior, ele teria como herdeiros os dois filhos dele: o de 40 anos que toca o negócio e a filha menor de idade. Pelo novo código, desse único bem que ele deixou de herança, que é a empresa, um terço é do filho de 40 anos, um terço é da menina, um terço da última esposa casada em separação total de bens. Até que essa menina complete dezoito anos, a mãe, pela decorrência do que se chamava pátrio poder e hoje poder familiar, poder parental, ela tem administração e usufruto legais. Assim, cada um tem 33%.

Conjur — Como a empresa pode funcionar nesta situação?

Renata Guimarães — Então, o diálogo dentro desta empresa é do filho desesperado, que sempre trabalhou lá e que tem 33%. É da mãe desta criança, que naturalmente não se dá bem com esse filho, porque foi a causa da ruptura do casamento. E de uma terceira pessoa, a segunda esposa que caiu nessa situação através de um casamento recente. Em uma limitada, pelo novo código o quorum para deliberações básicas é de 75%. Nessa situação, para três pessoas que não têm diálogo, 75% é 100%. Ou seja, a chance de entendimento é zero. Quer dizer, a empresa tem sérios problemas.

Conjur — O que poderia ter sido feito nesse caso?

Renata Guimarães — É esse o papel do planejamento familiar-societário. Primeiro, transformar essa limitada em uma S/A, em que você tem maioria de 51%. Segundo, fazer um testamento. Nesse testamento, estabelecer o seguinte: “metade dos meus bens eu deixo para o meu filho, para a minha outra filha e para minha esposa. A outra metade, eu vou deixar para os meus dois filhos”. Na parte legítima, não há como mexer. É a equação legal. 50% são divididos segundo a lei e cabe 1/3 para cada um deles. A outra parte que é disponível, os outros 50%, eu vou atribuir aos dois filhos. E vou dar a gestão da empresa ao meu filho de quarenta anos”. Ou então, já que pode haver um conflito entre o filho de quarenta anos e a filha de doze, vou nomear um terceiro para administrar dessa sociedade. Esta é uma situação típica para se fazer um testamento, porque há um conflito enorme, um conflito natural. O testamento poderia acertar esses quoruns, retirar a influência da mãe do herdeiro menor, alocar a distribuição do patrimônio.

Conjur — O testamento facilita o inventário?

Renata Guimarães — O fato de ter um testamento, necessariamente, não abrevia um inventário. O testamento pressupõe inventário. Quando a pessoa morre, no prazo de 30 dias do falecimento tem que ser apresentado o testamento e aberto o inventário. Existem vários tipos de testamento: particular, cerrado, público. Para se materializar, ele precisa ser apresentado, considerado válido, pronto para ser cumprido, transportado para o inventário,. Se quiser evitar um inventário há outros instrumentos. Você pode fazer uma doação transmitindo a nua propriedade para os filhos. A nua propriedade é o miolo, que você transmite. As outras camadas, que são a posse, a gestão, os lucros, os rendimentos, os dividendos você preserva.

Conjur — A doação é uma boa saída?

Renata Guimarães — A doação tem que ser observada com muita cautela. Uma situação é uma doação de uma pessoa de 70 anos, outra é de uma pessoa de 35 anos. A vida muda muito, e a reversão das doações é bastante delicada. Ela se dá em hipóteses específicas de atentar contra a vida do doador, ingratidão. Mas, para transmissão patrimonial, manutenção do controle da situação e evitar o inventário, é um instrumento muito interessante, de usufruto, comum à propriedade.

Conjur — Quanto tempo pode demorar um inventário?

Renata Guimarães — Em tese, a lei estipula prazos curtos. O inventário mais curto que eu já fiz durou 30 dias. Foi bastante rápido. Mas acompanho outro que dura 14 anos. Quando se lê o testamento, é evidente a intenção da pessoa de evitar que os herdeiros brigassem. Mas esse é tão rigoroso, que provocou exatamente o inverso. É difícil prever. Depende do nível de entendimento dos herdeiros, da complexidade do patrimônio envolvido, da existência de menores, de dívidas, de disputa societária, de um testamento eventualmente bem intencionado, mas mal estruturado.

Conjur — A litigiosidade nessa área de sucessão é muito alta?

Renata Guimarães — Costumava ser muito mais tranqüilo. De uns anos para cá, eu sinto uma litigiosidade crescente. Tanto nos inventários, quanto nas separações, o que valoriza mais o planejamento. O planejamento no casamento para discutir regime de bens, o que se pretende com relação ao casamento, o planejamento na empresa familiar para evitar um inventário que quebre a família e comprometa o negócio.

Conjur — Tem a possibilidade de um testamento ser anulado?

Renata Guimarães — Tem. O testamento pode ser anulado se quando ele foi feito a pessoa já não gozava da sua plena capacidade mental. Anular um testamento com a pessoa, por exemplo, já falecida é muito delicado. Como você prova a incapacidade da pessoa ao tempo do testamento? É feita uma perícia médica em cima do que remanesceu de prontuários médicos, de exames, de depoimentos dos profissionais que o atenderam. É uma briga muito difícil. Normalmente, um testamento é anulado quando tem um erro de forma. Por exemplo, pelo código anterior precisava de cinco testemunhas, pelo novo código, de duas. Um testamento feito sem testemunhas, ou que prescinde de alguma formalidade, pode ser anulado. A tendência do juiz é sempre de preservação do testamento.

Conjur — E na falta dos pais, qual é a obrigação dos avós, por exemplo?

Renata Guimarães — No caso da pensão alimentícia dos filhos, em um primeiro momento, obrigação é do pai e da mãe. Se o pai está desempregado, os pais dele respondem subsidiariamente. Há muitas ações de alimentos movidas por filhos contra avós na precariedade financeira do pai ou na impossibilidade do pai, na hipótese de morte. Isso atinge os avós, mas não atinge os tios. É um dever que se estende aos avós.

Conjur — Se o pai e a mãe morrem juntos e ficam três filhos menores, quem é o tutor legal desses filhos?

Renata Guimarães — A lei estabelece que a responsabilidade é em primeiro lugar do avô paterno, depois do avô materno, avó paterna e avó materna nessa ordem. Depois o irmão mais velho do pai, irmão mais velho da mãe.

Conjur — E em relação à guarda dos filhos, houve alguma alteração com o novo Código?

Renata Guimarães — Todo mundo fala que o novo Código favoreceu a guarda paterna. Não entendo assim. Houve uma evolução cultural e social. Antes do novo Código já havia um número freqüente de processos em que o pai pleiteava a guarda dos filhos. Eu diria que nos últimos cinco anos esses processos têm sido crescentes e freqüentes. Nos últimos anos houve inúmeras decisões do Tribunal dizendo que a guarda se pauta pelo interesse dos filhos. É uma evolução jurisprudencial muito anterior ao novo Código. Há uma evolução do comportamento do pai que em uma situação anterior era mais ausente, mais voltado para o trabalho, mas em uma situação atual é muito mais voltado para os filhos. Hoje há guardas compartilhadas, o que não havia antes. Há guarda unilateral do pai ou da mãe. O novo Código consolidou o entendimento que já existia, no sentido de que deterá a guarda o pai ou a mãe que melhor condição tiver de formar os filhos. E não é só a condição financeira, é a condição pessoal, emocional, psicológica, de equilíbrio, de formação.

Conjur — Quais as provas principais em uma definição de guarda?

Renata Guimarães — É a perícia psicológica e social. E social não é a parte financeira, é toda a dinâmica da casa. Como é que se estabelece a dinâmica da casa? Evidentemente, que um homem de 16 anos que se senta à frente de um juiz e fala “eu quero morar com meu pai por causa disso e disso”, o juiz não vai dizer “eu vou dar a guarda porque ele diz”. O juiz vai dizer que a perícia psicológica apurou isso. Ouvido o filho em depoimento, a situação é essa. Enfim, tem um peso. Juridicamente o filho não escolhe. O que ocorre é que ao longo do tempo, a argumentação dele vai ganhando relevância para que juntamente com outros elementos, o juiz confira a guarda a um deles.

Conjur — A realidade é mais forte que a lei.

Renata Guimarães — A realidade foi refletida pela lei. Esse é um viés interessante do Direito de Família. Diferente de outras áreas do Direito tem essa correspondência, de que a lei acaba refletindo, se rendendo a uma configuração social e cultural.

Conjur — O papel da mulher na sociedade moderna também acabou provocando mudanças, não é? A realidade deu à mulher um espaço e uma relevância maior antes da própria legislação.

Renata Guimarães — Sem dúvida. Desde a Constituição, a mulher foi colocada em várias situações de igualdade. Mas tem um aspecto interessante, que é o aumento do número de separações pedidas por mulheres entre 35 e 45 anos porque estão insatisfeitas. Isso é curioso. Antes tinha uma situação maior de maridos que pediam a separação, ou de mulheres com uma causa, por exemplo, de infidelidade. Mais recentemente, isso está mudando. A mulher não se separa por uma causa pontual, como abandono de lar. O que há é uma insatisfação com o casamento. Normalmente são mulheres que trabalham, que não dependem do marido, e tem independência patrimonial, com filhos já mais crescidos. Normalmente a separação é amigável. Eu acho que é social e cultural.

Revista Consultor Jurídico, 10 de outubro de 2005

Fonte: http://conjur.estadao.com.br/static/text/38566,2

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