DE PAI PARA FILHO
Lembro-me como se fosse ontem. Papai e mamãe arrumando tudo. Finalmente o grande dia havia chegado. Esperei por tanto tempo...
Vou explicar. Eu havia acabado de completar 10 anos. Papai sempre foi um assíduo aeromodelista. Desde pequeno o via montando os próprios aviões... Lembro-me dele dizendo que “os melhores são os que nós mesmos fazemos, pois são como filhos, construímos e acompanhamos cada parte da montagem.” Assim eu acabei me apaixonando pelo hobby. Mas ele dizia que eu ainda era muito pequeno pra freqüentar a pista e que quando eu tivesse 10 anos, eu poderia acompanhá-lo.
Esse dia finalmente chegou. Arrumamos tudinho, colocamos as coisas no carro, nos despedimos de mamãe. Pegamos a estrada. Ele ria da minha ansiedade e contava que na primeira vez dele também se sentiu assim. Dizia pra mim que um dia eu iria pilotar um sozinho. Eu ficava mais e mais ansioso.
Chegamos à pista e tiramos tudo do carro. Um lugar grande e aberto que, segundo ele, era ideal para a prática do hobby. Ele me deu algumas instruções do tipo: “Olha mas não mexe em nada” e “Fica sempre perto de mim, até eu ir voar, depois você fica naquele banquinho ali.” Acompanhei toda a montagem da asa. Ele começou a girar a hélice... Meu coração estava disparado... Girou uma, duas, três... Comecei a ficar preocupado, mas ele disse que era assim mesmo... Girou quatro, cinco, seis. Mexeu numa agulhinha, o motor quase pegou na sétima e morreu de novo... Girou oito, nove, dez... não pegava.. outros colegas dele vieram ajudar, e em meio aquele monte de adultos tentando fazer um único motorzinho pegar, comecei a chorar e dizer que queria ir embora. Meu pai me consolava dizendo que isso acontece. Pediu para eu olhar outros modelos que já estavam voando, mas eu queria vê-lo voar. Não importavam os outros, eu queria ele. Mas ele não voou. Algum problema impediu meu pai de voar e achei que eu é que tinha estragado tudo. Ele me dizia que não era culpa minha mas eu não acreditava. Achava que se não tivesse ido, ele teria voado e então decidi que não iria, nunca mais, pisar numa pista de aeromodelismo.
Anos depois meu pai me convenceu a montar um. Relutei. Mas era adulto, sabia que aquilo que havia acontecido era passado. Depois de uns meses montando e ajustando, tudo supervisionado por ele, pois era bem mais experiente que eu, fomos pra pista e voei. Uma sensação maravilhosa de liberdade, de poder, de vencer a gravidade. Era como se eu estivesse lá dentro. Voando mesmo. Nesse dia entendi a magia do aeromodelismo. O Aeromodelismo acabava de ganhar mais um adepto.
Bom, casei e continuei minha empreitada. Tive outros modelos, montei uns e comprei outros. Hoje tenho um filho. Ontem ele fez dez anos. Já tinha visto esse filme. Ele sempre me pedindo para acompanhar a mim e ao avô. Mas não deixava. Prometi a ele que com dez anos o levaria. Puxa, como dez anos passam rápido.
Mas havia chegado a hora. Acordamos e começamos a arrumar tudo. Ele sempre em cima de mim e do avô. Olhando e perguntando sobre tudo. Meu pai sorria, mas percebeu meu nervosismo. Certa hora, ele levou-me para a cozinha e me disse: “O que aconteceu no passado, não se repetirá. Confie em mim!” Nessa hora tive um acesso rápido de choro. Toda a lembrança do passado me veio na cabeça, o motor, as pessoas tentando ajudar e meu choro desesperado com um misto de tristeza e raiva. Quase meu filho me pega chorando. Quando ele entrou na cozinha me chamando para ir, estava abraçado a meu pai e ele me perguntou porque estava abraçado, eu lhe respondi que estava assim porque amava muito meu pai. Nessa hora ele me surpreendeu correndo, abraçando a mim e meu avô e dizendo que também amava a gente. Que emoção... Segurei as lágrimas de felicidade que queriam cair e disse: “Vamos gente! A pista nos espera!”
Entramos no carro e quando chegamos, arrumamos tudo, desembarcamos os modelos, e montamos. Meu filho sempre em cima. Recomendei-lhe cuidado e que não tocasse em nada. As lembranças vinham vindo e eu ficando mais e mais nervoso. Parecia que tudo aquilo era uma prova e que naquele momento eu teria que vencer, provar para mim mesmo que meu filho não iria passar pelo que passei. Parece boba a coisa toda, mas eu encarava com tamanha seriedade que suava “em bicas”.
Meu pai decolou, num acesso de covardia disse ao meu filho que olhasse o vovô voando. Ele então disse: “Papai, não me importam os outros. Quero ver o senhor voando!” Os olhinhos dele brilhavam de ansiedade. Nessa hora, papai balançou a cabeça e disse que eu decolasse de uma vez. Ele queria ver seu neto sorrindo. Piscou para mim como se quisesse dizer: “Confie em mim!” Peguei o modelo e girei: uma... duas... três... quatro... cinco, meu filho nervoso do meu lado - seis... sete... oito... – comecei a ficar nervoso. Nove, dez, onze e nada. Nem um sinalzinho de vida que fosse.
Meu filho explodiu em lágrimas assim que os outros vieram e começaram a me ajudar. Todos sentiam que ele estava triste e queriam fazer o motor pegar. Meu pai passou a mão na cabeça dele e ele saiu correndo. Era uma criança, não iria compreender que tem dias que não dá certo... Mas como explicar? E como conter a minha própria fúria contra aquele aeromodelo que no final de semana anterior pegava em no máximo duas tentativas... Como fazer? Corri atrás de meu filho. Ele estava sentado, desconsolado. Chorava muito dizendo que a culpa era dele... Que nunca mais viria à pista. Senti na pele o que papai sentiu comigo e olhei para trás... Papai me fez um sinal de que pedisse uma última chance. Coisa que ele não havia feito no passado. Nessa hora me senti maior do que a derrota. Sentei com meu filho, pedi-lhe só mais uma chance. Se não desse certo iríamos para casa. Ele me olhou, acho que viu meu senso de vitória e caminhamos até o avião de mão dadas. Eram só uns metros, mas pareceram quilômetros. Respirei fundo. Contei até três, fiz uma oração rápida e girei... O motor pegou!!! Meu filho pulava, me abraçou forte. De repente o motor morreu... Ele olhou para mim e disse: “vai papai, gire que vamos voar!!!”
Nesse dia o Aeromodelismo ganhou mais um adepto. Um adepto mirim. Voamos juntos, deixei-o mexer um pouquinho e assumi o controle. No fim da tarde, na volta pra casa, - meu filho ia dormindo dentro do carro, com um sorriso estampado no rosto, acho que estava sonhando ainda com os pequenos aviões que tanto encantam a mim e aos outros adultos e crianças que gostam do hobby -, perguntei a meu pai o que ele havia feito. Ele disse: “Incentivei-o a tomar atitude certa. Nenhum homem desiste antes de pedir uma última chance. Lembra que quando chegamos em casa, você foi para o quarto? Eu fui para a oficina, botei o modelo em cima da mesa e girei o motor... ele pegou de primeira. Talvez se tivesse pedido a última chance aquilo não tivesse acontecido. Assim meu filho, nunca desista sem pedir uma última chance...” Agradeci a meu pai o conselho e segui na estrada, feliz com tudo o que havia aprendido e mais ainda pelo meu pai ainda estar comigo para me ensinar o que ele também aprendeu.
Arley do Nascimento Cordovil
25 anos, Aeromodelista iniciante.
Belém – PA