DESEJO DE FILHOS
Louise Brown, a primeira bebê de proveta do mundo, nasceu em 1978. Desde então, esse é um campo que oscila entre os sentimentos do milagre e da perdição: o milagre da criação humana em laboratório e a ameaça da perdição pelo surgimento de novas formas de família.
A primeira resolução do CFM sobre o tema, em 1992, restringia o acesso às tecnologias reprodutivas a mulheres sozinhas ou a mulheres heterossexuais.
A nova resolução se refere a "todas as pessoas", uma revolução moral sem precedentes no campo da sexualidade, da reprodução e da família no Brasil.
O surpreendente é que tivemos que esperar quase duas décadas para afirmar publicamente que o desejo de filhos é algo comum a todas as pessoas. Um homem sozinho, uma mulher lésbica, uma travesti ou uma pessoa intersexo, qualquer uma delas pode ter seu desejo de filhos realizado com o auxílio das técnicas médicas.
A restrição de direitos reprodutivos a essas pessoas jamais foi dada por lei ou política pública brasileira, mas por interpretações equivocadas que supunham ser a família ou a filiação um direito exclusivo de pessoas heterossexuais.
A resolução do Conselho Federal de Medicina não disciplina direitos individuais, mas, ao regular a prática médica, acaba por determinar quais pessoas podem ter acesso como pacientes.
Um homem sozinho ou uma mulher gay em união estável não eram acolhidos pela antiga resolução, e os médicos poderiam se sentir intimidados em atendê-los pelo risco de um processo ético no conselho.
Um médico de medicina reprodutiva não poderá se recusar a atender um casal de mulheres lésbicas ou um homem sozinho que faça uso de uma gravidez de substituição para ter filhos.
Novos arranjos familiares já existentes na sociedade brasileira agora estarão também nos consultórios médicos à procura de auxílio para o nascimento do filho biologicamente vinculado. Grande parte dessas novas famílias já havia alcançado os tribunais em busca de adoção legal. Muitos ainda preferirão a adoção à medicalização do corpo para o projeto de filhos.
Mas o segundo passo dessa revolução será a mudança nas concepções privadas de cada médico sobre definições de família e filiação.
A antiga resolução do Conselho Federal de Medicina era discriminatória, ao restringir o acesso às tecnologias reprodutivas a mulheres ou casais heterossexuais. Foi uma longa espera para que essa marca heterossexista da sociedade brasileira fosse reparada.
DEBORA DINIZ é professora da Universidade de Brasília e pesquisadora da Anis - Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero.
Artigo Publicado na coluna Tendências e Debates do Jornal Folha de São Paulo em 28/01/2011