FAMÍLIA NORMAL?
Será que hoje em dia alguém consegue dizer o que é uma família normal? Depois que a Constituição Federal trouxe o conceito de entidade familiar, reconhecendo não só a família constituída pelo casamento, mas também a união estável e a chamada família monoparental - formada por um dos pais com seus filhos -, não dá mais para falar em família, mas em famílias.
Casamento, sexo e procriação deixaram de ser os elementos identificadores da família. Na união estável não há casamento, mas há família. O exercício da sexualidade não está restrito ao casamento - nem mesmo para as mulheres -, pois caiu o tabu da virgindade. Diante da evolução da engenharia genética e dos modernos métodos de reprodução assistida, é dispensável a prática sexual para qualquer pessoa realizar o sonho de ter um filho.
Assim, onde buscar o conceito de família? Esta preocupação é que ensejou o surgimento do IBDFAM - Instituto Brasileiro do Direito de Família, que há 10 anos vem demonstrando a necessidade de o direito aproximar-se da realidade da vida. Com certeza se está vivendo um novo momento, em que a valorização da dignidade humana impõe a reconstrução de um sistema jurídico muito mais atento aos aspectos pessoais do que a antigas estruturas sociais que buscavam engessar o agir a padrões pré-estabelecidos de comportamento. A lei precisa abandonar o viés punitivo e adquirir feição mais voltada a assegurar o exercício da cidadania preservando o direito à liberdade.
Todas estas mudanças impõem uma nova visão dos vínculos familiares, emprestando mais significado ao comprometimento de seus partícipes do que à forma de constituição, a identidade sexual ou a capacidade procriativa de seus integrantes. O atual conceito de família prioriza o laço de afetividade que une seus membros, o que ensejou também a reformulação do conceito de filiação que se desprendeu da verdade biológica e passou a valorar muito mais a realidade afetiva.
Apesar da omissão legislativa o Judiciário vem se mostrando sensível a essas mudanças. O compromisso de fazer justiça tem levado a uma percepção mais atenta das relações de família. As uniões de pessoas do mesmo sexo vêm sendo reconhecidas como uniões estáveis. Passou-se a prestigiar a paternidade afetiva como elemento identificador da filiação e a adoção por famílias homoafetivas se multiplicam.
Frente a esses avanços soa mal ver o preconceito falar mais alto do que o comando constitucional que assegura prioridade absoluta na proteção integral a crianças e adolescente. O Ministério Público, que tem o dever institucional de zelar por eles, carece de legitimidade para propor demanda para retirar uma criança de 11 meses de idade da família que foi considerada apta à adoção. Não se encontrando o menor em situação de risco falece interesse de agir ao agente ministerial para representá-lo em juízo. Sem trazer provas de que a convivência familiar estava acarretando prejuízo à criança, não serve de fundamento para a busca de tutela jurídica a mera alegação de os adotantes serem um "casal anormal, sem condições morais, sociais e psicológicas para adotar uma criança". A guarda provisória foi deferida após a devida habilitação e, sem qualquer subsídio probatória, sem a realização de um estudo social ou avaliação psicológica, o recurso interposto sequer poderia ter sido admitido.
Se família é um vínculo de afeto, se a paternidade se identifica com a posse de estado, encontrando-se há 7 meses o filho no âmbito de sua família, arrancá-lo dos braços de sua mãe, com quem residia desde quando tinha 3 meses, pelo fato de ser ela transexual, para colocá-lo em um abrigo, não é só ato de desumanidade. Escancara flagrante discriminação que não se justifica. A Justiça não pode olvidar que seu compromisso maior é fazer cumprir a Constituição que impõe respeito à dignidade da pessoa humana, concede especial proteção à família como base da sociedade e garante à criança o direito a convivência familiar.