NOVAS ATUAÇÕES E NOVOS DILEMAS ÉTICOS
Em um cenário onde as configurações familiares estão cada vez menos homogêneas, os conflitos que nela se originam assumem aspectos antes não contemplados. No bojo destas transformações sociais observamos uma freqüência cada vez maior de demandas judiciais em uma área antes preservada da intervenção alheia. “Em briga de marido e mulher não se mete a colher”, diz o ditado. Não é bem isto que observamos segundo estatísticas recentes .
Dentro deste recorte particular de uma problemática doméstica alçada ao âmbito público, muitas vezes, tem surgido uma demanda de trabalho para o psicólogo. Surge como uma solicitação legítima da área de atuação clínica (consultório), mas que logo vai revelar a sua verdadeira face – trata-se da utilização do serviço psicológico em outro âmbito: no judiciário.
Aqui há um risco para todos os envolvidos. Para o profissional trata-se de defrontar-se com problemas e solicitações problemáticas que lhe impõem cuidadosa reflexão e manejo. Para os potenciais clientes trata-se de esclarecer os limites e alcances da atuação profissional do psicólogo. Este é um alerta que está sendo sinalizado pelo próprio órgão de classe da categoria: o Conselho Regional de Psicologia – Região 06.
Faremos agora uma longa citação do Extrato do Jornal PSI n.º139 (jan./fev. 2004) do Conselho Regional de Psicologia SP que, em sua p. 09, trata de processos éticos. Mais especificamente estamos falando da elaboração de documentos escritos decorrentes de avaliação psicológica. Solicitamos a paciência do leitor para tal citação que esclarece e exemplifica a problemática que ora trazemos.
“O psicólogo S. recebeu em seu consultório mais um menino, com cerca de quatro anos de idade, encaminhado pelo colega que se mudaria da cidade. Depois de um rápido diagnóstico, começou a atendê-lo, fazendo eventualmente orientações com a mãe, que era separada do pai da criança e levava, sozinha, o filho para a psicoterapia. O ex-marido estava em constante briga com a mãe, de modo que o garoto via o pai somente nos finais de semana, conforme havia sido estipulado pelo juiz, no processo de separação. No entanto, ocorria uma disputa judicial, na qual o casal não brigava pela guarda do filho, mas pelo número de visitas feitas pelo pai. A mãe dizia sempre nas sessões de orientação que o pai era agressivo, violento, que não era possível o diálogo com ele e que era esta a causa de todos os sintomas apresentados pelo menino e da impossibilidade de melhora dos mesmos.
O psicólogo, que cada vez mais sabia das agressões e ameaças do pai via relato da mãe, pensou ser prudente não se envolver com ele, trabalhando apenas com a mãe e o menino, de modo que nunca chamou o pai para qualquer tipo de participação neste trabalho. Ao tomar essa decisão, preocupava-se principalmente com o bem-estar da criança e zelava por seu espaço de terapia, na qual sempre eram trazidas situações, referentes ao relacionamento com o pai.
Cerca de três meses depois, a mãe da criança solicitou ao psicólogo um relatório sobre o estado de seu filho para que, na disputa com o marido, tivesse dados perante o juiz que sustentassem e justificassem o pedido de redução do número de visitas do pai. O psicólogo primeiramente hesitou, mas depois, na tentativa de proteger a criança atendida, escreveu o documento, intitulado como ‘Laudo Psicológico’ e não apresentava endereçamento. Iniciava-se com alguns dados da criança e em seguida passava a expor uma análise psicológica da mesma, seguida de informações a respeito de sua relação com a figura paterna, a qual é descrita como descontrolada e agressiva. O profissional aponta os prejuízos causados ao menino pelo contato com a figura paterna e pelas disputas desta com a figura materna, cuja relação com a criança é avaliada positivamente. Diante da descrição da figura paterna, incluindo a hipótese de transtorno psiquiátrico, o psicólogo faz sugestões quanto à periodicidade das visitas do pai. No final, sua assinatura, sua inscrição no CRP-SP e a data.
Após a notificação da juntada deste documento aos autos do processo de regulamentação de visita, o pai fez a denúncia contra S. no CRP-SP. Ele apresenta cópia do documento e alega nunca ter se encontrado com o psicólogo, o que não lhe dava condições de fazer tantas afirmações a seu respeito”.
Fica evidente a construção e elaboração de um material, intitulado como laudo, que não apresenta endereçamento nem tampouco o objetivo, e que faz uma série de afirmações sem a fundamentação necessária a respeito da metodologia utilizada e da origem das suas conclusões. Além disso, outras questões se colocaram à nossa reflexão: baseado em quê o profissional emitiu laudo afirmando agressividade de um pai que não conhece? Basear-se de imediato em relatos da mãe, que está em disputa com este pai na justiça, não seria imprudência ou precipitação? Será que as conseqüências destas afirmações, que provavelmente dificultarão as visitas de um pai a seu filho, não deveriam ser algo mais refletido, pensado e fundamentado, para além de serem oferecidas de imediato a pedido da mãe? Não é estranho que o psicólogo a partir de suas técnicas de avaliação psicológica, após empreender uma análise acerca da figura paterna, passe a fazer afirmações acerca do pai, desaconselhando contato com o mesmo?
Entendemos que este psicólogo comete falhas técnica na emissão do laudo psicológico, não demonstrando preparo técnico e pessoal na elaboração do documento escrito. Não há referência aos métodos e técnicas utilizados para seu embasamento e as declarações não são devidamente fundamentadas, além de não estar assinalado o seu caráter confidencial. Por fim, este psicólogo forneceu documento escrito à parte envolvida em processo judicial, contendo avaliações sobre a outra parte, que jamais havia atendido, não demonstrando ponderação quanto às possíveis implicações decorrentes de seu parecer. Assim, podemos apontar a violação dos seguintes artigos do Código de Ética Profissional dos Psicólogos:
Princípios Fundamentais:
I- O psicólogo baseará seu trabalho no respeito à dignidade e integridade do ser humano.
Art. 1º - São deveres fundamentais do psicólogo:
c) prestar serviços psicológicos em condições de trabalho eficientes, de acordo com os princípios e técnicas reconhecidas pela ciência, pela prática e pela ética profissional.
Art. 2º - Ao psicólogo é vedado:
m) adulterar resultados, fazer declarações falsas e dar atestado sem a devida fundamentação técnico-científica.
Muitos profissionais cometem falhas técnicas ao emitirem documentos sobre avaliação psicológicas e, ao cometerem falhas técnicas, estão cometendo também falhas éticas, seja porque é um princípio ético a garantia da qualidade do serviço prestado, seja porque este comprometimento da qualidade técnica traz repercussões e prejuízos a pessoas envolvidas que claramente apontam um caráter ético.
A avaliação psicológica entendida comum processo técnico-científico de coleta de dados, estudos e interpretação e informações a respeito dos fenômenos psicológicos, utiliza métodos, técnicas e instrumentos específicos da Psicologia. Seus resultados, muitas vezes expressos nestes documentos, devem considerar os condicionamentos históricos e sociais para servirem como instrumento de modificação da realidade. Pensando assim, temos como princípio ético respeitar o rigor e a seriedade da emissão de qualquer documento que seja. Produzimos e oferecemos documentos de domínio público e, assim sendo, estes tomam formas diferentes, em espaços diferentes, para pessoas diferentes: há que se cuidar do que se olha, do que se vê e do que se diga!
Cabe, ainda, lembrar a Resolução 17/02 regulamenta os documentos decorrentes de Avaliação Psicológica. confira no site www.crpsp.org.br
Você pode dialogar conosco a respeito, trazer suas sugestões, opiniões, dúvidas ou temas de interesse, pelo e-mail Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.
Destacamos o exemplo e a colocação do CRP porque estamos cientes da ocorrência de tais desvios. Fica o alerta para aqueles que, porventura sofreram algum tipo de prejuízo decorrente de uma má conduta profissional. O esclarecimento se faz necessário não só ao profissional, mas ao público em geral para abrir um canal legítimo para queixas se for o caso.
Sidney Shine
Psicanalista e Psicólogo Perito Judiciário
Contato: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.
Consultório: 5583-3374
São Paulo, 03 de junho de 2004.