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GUARDA COMPARTILHADA, IGUALDADE DE GÊNERO E JUSTIÇA NO BRASIL

  1. Introdução
Em junho de 2008 a Lei Nº 11.698, promulgada pelo Congresso nacional e sancionada pelo Presidente da República, alterou os artigos 1.583 e 1.584 do Código Civil brasileiro, para instituir e disciplinar a guarda compartilhada, visando torná-la o sistema geral (default) de custódia dos filhos menores de pais separados.
Segundo a nova redação do artigo 1.584:
Art. 1.584. A guarda, unilateral ou compartilhada, poderá ser:
I – requerida, por consenso, pelo pai e pela mãe, ou por qualquer deles, em ação autônoma de separação, de divórcio, de dissolução de união estável ou em medida cautelar;
II – decretada pelo juiz, em atenção a necessidades específicas do filho, ou em razão da distribuição de tempo necessário ao convívio deste com o pai e com a mãe.
§ 1o Na audiência de conciliação, o juiz informará ao pai e à mãe o significado da guarda compartilhada, a sua importância, a similitude de deveres e direitos atribuídos aos genitores e as sanções pelo descumprimento de suas cláusulas.
§ 2o Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda compartilhada.
Ou seja, pela nova redação dada ao art. 1584 no Código Civil, a guarda compartilhada poderá ser requerida por consenso entre os pais ou, quando não houver acordo entre pai e mãe, isto é, quando pai e mãe estiverem em disputa pela guarda dos filhos, o juiz deverá decretar a guarda compartilhada, em razão da divisão de tempo necessário ao convívio dos filhos com o pai e com a mãe, tendo em vista a semelhança/equivalência de deveres e direitos de ambos nessa modalidade de guarda.
Por óbvio que o “sempre que possível” não se refere à ausência de acordo ou consenso entre pai e mãe já que, segundo o próprio texto da Lei, a guarda compartilhada deverá ser aplicada – decretada pelo juiz – exatamente nesses casos.
Antes dessa mudança na legislação, em caso de separação dos pais, os filhos deveriam ficar sob a custódia daquele que tivesse “melhores condições” de exercê-la, dando margem ao surgimento de uma doutrina e a interpretações sobre o que seriam essas “melhores condições”.  Entretanto, as varas de família, por meio de suas decisões, estabeleceram na prática a interpretação que, caso pai e mãe sejam ambos “cidadãos de bem”, sem nada grave a desabonar sua conduta, a mãe é quem detém as tais “melhores condições”.
De fato, na vigência da Lei anterior, mais de 90% das disputas de guarda terminavam com a “vitória” das mães e a “derrota” dos pais que, como degredados de suas próprias famílias, eram condenados a se afastarem de seus próprios filhos, devendo, apenas, pagar pensão e visitá-los conforme o cronograma determinado pelo juiz, geralmente fins de semana alternados.
Isso era parcialmente compreensível, apesar de cruel, como uma prática jurídica remanescente de uma época arcaica, onde predominava rígida divisão de papéis entre homens e mulheres na organização familiar, cabendo aos primeiros o papel de provedor e às segundas o papel de “dona de casa” e criadora dos filhos.  Por isso, nas famílias onde ocorria essa divisão, os vínculos afetivos dos filhos eram naturalmente maiores com a mãe, exatamente por serem criados por ela, por conviverem mais tempo com elas.
Essa situação socialmente produzida chegou a gerar um mito de que as mães fossem naturalmente mais aptas a criarem os filhos. As pessoas tendem a acreditar que seus valores e sua cultura são “naturais” ou superiores, como se obedecessem a alguma ordem divina, é uma forma de se isentar de responsabilidade pelos próprios comportamentos e a própria condição individual e social deles advinda.
A antropologia explica isso e dá a esse fenômeno o nome de etnocentrismo – a percepção de que os valores em uma determinada cultura são inevitáveis ou superiores e não meros construtos sociais. A psicologia contemporânea também esclarece que não há nenhuma aptidão naturalmente superior das mães para a criação dos filhos após o desmame, apenas uma situação socialmente produzida.
De qualquer forma, ainda que as mães tivessem alguma aptidão substancialmente superior aos pais para cuidar dos filhos, o que não tem base científica, isso não justificaria restringir o convívio entre pais e filhos, isso pode apenas atender aos interesses de mães motivadas por ressentimentos contra os pais, não aos interesses dos filhos.
A humanidade em geral e a sociedade brasileira em particular caminham para um novo tempo de igualdade entre homens e mulheres em todos os campos da vida social, porque somente nos papeis parentais dos casais separados, definidos muitas vezes sob a tutela da Justiça, a desigualdade deve permanecer?
Conquanto ainda existam muitas famílias organizadas da forma tradicional, com pai provedor e mãe dona-de-casa, na sociedade contemporânea esta não é mais a organização predominante.  Atualmente 50% da população economicamente ativa do Brasil são mulheres, isto quer dizer que a quantidade de mulheres que trabalham fora é igual à de homens, demandando a divisão entre mãe e pai das tarefas atinentes à criação dos filhos na maioria das famílias.
Ora, na maioria das famílias atuais, onde mulher e homem trabalham e participam da criação dos filhos cotidianamente, é evidente que uma separação abrupta, uma drástica redução de convívio de uma mãe ou um pai com seus filhos em decorrência de uma separação do casal é uma punição cruel e desnecessária para esse genitor e esses filhos.
Conviver com os filhos apenas em fins de semana alternados, às vezes acrescido de mais um dia durante a semana, é muito pouco para uma convivência saudável, de qualidade, entre uma criança e qualquer dos seus genitores.
Os juízes, ao assegurarem um “direito de visitas”, produzem também uma “proibição de convívio” em todo o tempo fora daquele horário fixado para as visitas. Nas famílias com divisão tradicional de papéis, que hoje são minoria, ou para os pais ou mães que já eram ausentes ou pouco participativos, essa proibição geralmente não causa grande sofrimento. Dificilmente enveredam por uma sofrida e onerosa disputa de guarda na Justiça.
Os pais que ousam disputar, em desvantagem, a guarda dos filhos, o fazem numa clara manifestação da vontade de continuar a exercer a paternidade depois da separação – afinal, a separação deveria ser apenas entre mulher e homem e nunca entre pai e filhos.
Praticamente só os pais que já participavam da criação de seus filhos, mais disponíveis, amorosos, com saudade de seus filhos, preocupados com eles, com medo do afastamento, tem a bravura – ou o devaneio – de ingressar numa quixotesca disputa de guarda contra aquela que, segundo a jurisprudência formada nas varas de família, detém as “melhores condições” de exercer a guarda: a mãe.
Note-se, portanto, que embora ainda haja uma minoria de famílias com divisão tradicional de papéis onde, em geral, as mães tem maior participação na criação dos filhos, as disputas de guarda na Justiça geralmente ocorrem justamente nas separações das famílias contemporâneas, onde mãe e pai têm participação cotidiana na criação dos filhos.
Portanto, esse afastamento é sobretudo prejudicial para esses filhos que, acostumados a um convívio cotidiano com seus pais, são condenados pela Justiça à se tornarem “semi-órfãos”, isto é, a não terem mais a convivência diária com um de seus genitores – tão benigna para a estruturação da personalidade e a formação emocional das crianças – passando à ter, no lugar disso, apenas a figura de um “visitante” esporádico, reduzido à uma importância menor do que a da empregada, do padrasto ou a da professora no cotidiano e na formação emocional dessas crianças.
  1. A Nova Lei
A nova Lei, portanto, engendrada no contexto de um movimento mundial pela igualdade de gênero, o que inclui e igualdade parental, foi concebida, atendendo a anseios da sociedade, para sanar esse problema e permitir que pais e filhos possam continuar a ter uma convivência saudável, cotidiana, mesmo após a separação dos pais.
Foi evidente, portanto, a intenção dos legisladores de promover a igualdade entre mães e pais nas questões de guarda, rompendo com o paradigma anterior, originado de uma época onde os papéis sociais de homens e mulheres eram bem mais estanques e desiguais.
A Lei da guarda compartilhada de 2008 tratava, portanto, de atualizar a abordagem que as questões de guarda deveriam receber nas varas de família, modernizando-a, trazendo um novo paradigma, mais adequado a um novo tempo de igualdade entre homens e mulheres em seus papéis sociais.
E o que aconteceu com a nova Lei?  O que mudou de 2008 pra cá nas varas de família brasileiras?
Atualmente, a grande maioria das disputas de guarda, mesmo quando o pai pleiteia apenas a guarda compartilhada, continua sendo “vencida” pelas mães – para derrota de pais e filhos. Ou seja, por incrível que pareça, não mudou muito o paradigma de soluções que a Justiça impõe aos casais e seus filhos após a separação. Na prática, a Lei foi tornada “letra morta” pelos nossos juízes, com a ajuda dos demais operadores de direito.
Como e porque isso ocorreu?
A Lei determina a aplicação da guarda compartilhada quando não houver acordo entre pai e mãe, “sempre que possível”.  Obviamente, na intenção do legislador, a ausência de acordo não poderia ser fator de impossibilidade, já que o próprio texto da Lei explicitamente diz que ela deve ser aplicada nesses casos.
Entretanto, esse “sempre que possível” parece servir como uma “brecha jurídica” para os magistrados insensíveis diante da problemática que a nova Lei veio tentar solucionar, agarrados à visão antiga ou cegos diante da realidade dos pais e mães que disputam a guarda dos filhos nas famílias contemporâneas.  Esses juízes continuam a aplicar a guarda unilateral, quase sempre para a mãe, por considerarem “impossível” aplicarem a guarda compartilhada na maioria dos casos concretos julgados.
E qual é essa “impossibilidade” recorrente que teria tornado a nova Lei quase inaplicável na prática?  A maioria dos magistrados tem interpretado que o litígio, isto é, a “ausência de acordo” entre pai e mãe tornaria a guarda compartilhada inaplicável.
Ora, mas a previsão de que ela seja aplicada na ausência de acordo entre a mãe e o pai faz parte do próprio texto da Lei.  A Lei diz que a guarda compartilhada deve ser aplicada exatamente quando “não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho”.
Como puderam, então, a maioria dos nossos magistrados chegar à essa interpretação que afronta a mera leitura atenta da Lei?
Para esses magistrados, as crianças precisam que seus pais estejam em consenso para poderem ficar sob a guarda conjunta de ambos e, caso não haja acordo, é melhor que um deles, quase sempre o pai, seja eliminado do papel parental que exercia antes da separação, transformado em um “visitante” de seus próprios filhos, que passarão a ser criados e educados monocraticamente pelo outro.
Assim, sob a justificativa de protegê-las do dissenso, esses magistrados condenam essas crianças a perderem o convívio cotidiano com um de seus genitores, a não receberem mais a influência, o amor, a educação e os cuidados de um de seus pais no dia-a-dia.
O bom senso e a psicologia contemporânea de ponta são quase unânimes em afirmar que o duplo referencial parental – pai e mãe – é o melhor para a formação emocional e psicológica dos filhos.  Por óbvio que essas duas referências, sendo de pessoas diferentes, sempre apresentará algum dissenso, mesmo entre casais que vivem juntos.
De fato, entre os casais não separados, se ambos participam ativamente da criação dos filhos como é o caso da maioria das famílias contemporâneas, é normal e até saudável que haja divergências eventuais. A própria vida, as relações em geral, também apresentam pluralidade de influências e visões, dissensos e desentendimentos, a criança vai conviver com isso a vida toda.
A professora da escola ou o padrasto podem não pensar igual à mãe, podem exercer influências contraditórias e eventualmente antagônicas sobre a criança, isso é natural. É a partir das múltiplas influências e da convivência com a pluralidade e eventuais confrontos de ideias que ela ampliará seus horizontes e formará sua própria visão individual de mundo. Porque somente seu pai deve ter a voz suprimida, abafada, afastada de sua educação?
Mesmo após a separação, quando as divergências entre os pais podem estar exacerbadas, se ambos os pais são amorosos para com os filhos, o duplo referencial ainda é benigno para a formação psicológica das crianças, o que só é possível com a divisão equilibrada de tempo de convívio com mãe e com pai.
A criança deve, idealmente, vivenciar a sua realidade parental sempre que ela lhe proporcionar receber amor de ambos os pais.  Sendo amada por ambos no dia-a-dia, ela tem meios de assimilar e elaborar as divergências entre eles que observar.
Isso é melhor para a formação psicológica dela do que uma “paz artificial”, onde um de seus pais simplesmente “some”, reaparecendo como um visitante derrotado, separado por lacunas de tempo muito maiores na percepção infantil do que na dos adultos, esvaziado de poder e de papel parental, distanciado da criação e da educação dela que é onde ela e seu genitor poderiam vivenciar e seguir ampliando o amor que nutriram um pelo outro desde o nascimento ou mesmo antes disso.
Em suma, o referencial de pai e mãe, sendo ambos amorosos, o convívio cotidiano com esse amor, é o que realmente importa para a criança e sua formação psicológica.
O essencial para a criança é o convívio amoroso com pai e mãe e a dupla referência que advém disso e não uma referência de domicílio ou uma estabilidade resultante do afastamento de uma dessas referências, tão estruturadoras para a personalidade infantil.  Portanto, não se deve jamais privar a criança da presença de um pai ou uma mãe sob a justificativa de afastá-la do litígio entre seus pais, litígio esse que quase sempre se ameniza ou pacifica com o tempo, se justiça for ministrada.
Ademais, quando o magistrado determina a guarda unilateral, extirpando de um dos genitores o papel parental que ele exercia antes da separação, além de subtrair da criança o amor e a referência a que ela estava acostumada, esse juiz também mutila esse genitor de uma parte da sua vida, de uma parte legítima de seu cotidiano, punindo um cidadão inocente que, não tendo sido um mau pai, deveria ter o direito inalienável de continuar a ser pai de seus filhos e participar cotidianamente da criação e do convívio deles.
Talvez esses magistrados não saibam disso, mas muitas crianças costumam perguntar a esse visitante, seu ex-pai, se a mãe vai arrumar um novo pai para elas.  Nenhum cidadão deveria jamais ser forçado pela Justiça a uma dolorosa e humilhante situação onde tivesse que ouvir isso de seus próprios filhos.
Quando sentencia a guarda unilateral visando estabelecer a paz, o magistrado talvez não perceba que essa paz é como a do escravo com seu dono, mantida pela força, violenta contra a criança e o genitor banido.  Essa sentença não promove justiça, ao contrário, perpetua o sentimento de injustiça e a mágoa entre o ex-casal. Na desigualdade não há justiça e sem justiça não haverá paz real para essa família reconfigurada, apenas a paz artificial da revolta sufocada de um cidadão condenado a diminuir-se diante de seus filhos.
Ainda por cima, ao sinalizar para o casal em litígio que a guarda compartilhada só é “possível” se houver acordo e que, portanto, a mera presença do litígio resultará na “vitória” daquele genitor que detiver “melhores condições” (= mãe), que estímulo essa litigante pré-aquinhoada terá para querer um acordo?
Ao invés de conduzir um processo que estimule o acordo e o entendimento entre o ex-casal acerca dos filhos, ao se guiar pelo velho paradigma mesmo nos tempos da nova lei, esses magistrados estimulam que o genitor que acredita que vencerá a disputa adote “estratégia do litígio”.
Para um genitor que se vê com favoritismo, em uma situação de não precisar entrar em acordo com o outro, basta fomentar o litígio e amplificá-lo em juízo que a causa será ganha, quando o melhor para as crianças seria exatamente o oposto, ou seja, que seus pais se entendessem – e que a Justiça os estimulasse a buscarem o entendimento, jamais dando a “vitória” àquele que não o buscasse.
Até porque, um genitor que não tem equilíbrio emocional para buscar o entendimento com o outro em prol dos filhos, ou que adota a “estratégia do litígio”, prejudica seus filhos e provavelmente não é o mais maduro e com melhores condições reais de exercer a guarda.
Na prática, ao sinalizar que a guarda compartilhada não será decretada, como prevê a Lei em seu art. 1584 inciso II, a menos que haja acordo entre os genitores, o magistrado está conferindo ao “favorito” um estímulo para impedir o acordo e, assim, um poder para sabotar o maior interesse dos filhos, que seria o acordo, o entendimento e o compartilhamento da guarda entre seus pais.
Assim, talvez por estarem conservadoramente agarrados ao paradigma antigo ou sem sensibilidade para compreender e enfrentar os problemas que apontamos, a maioria dos magistrados nas varas de família interpreta a Lei da guarda compartilhada de uma forma que a torna inócua, perpetuando o preconceito de gênero que ela veio combater.
Inócua porque é óbvio que os ex-casais que estão em consenso sobre os filhos, não estão em disputa de guarda, portanto não demandam da Justiça a aplicação da Lei. Entre os que demandam, a grande maioria continua alcançando os mesmo resultados, de forma que as estatísticas comprovam a manutenção do preconceito de gênero nas varas de família.
É impressionante que tantos juízes – profissionais altamente qualificados e remunerados – se aliem a uma interpretação absurda da Lei, que neutraliza sua eficácia, que sugere que ela sequer foi lida com atenção, preservando preconceitos extemporâneos acima da Lei.
  1. A interpretação do STJ para a nova Lei
Em setembro de 2011 o Superior Tribunal de Justiça publicou o Acórdão do Recurso Especial nº 1.251.000 - MG (2011/0084897-5), que teve por relatora a Ministra Nancy Andrighi.  Segundo a ementa desse Acórdão:
3. A guarda compartilhada é o ideal a ser buscado no exercício do Poder Familiar entre pais separados, mesmo que demandem deles reestruturações, concessões e adequações diversas, para que seus filhos possam usufruir, durante sua formação, do ideal psicológico de duplo referencial.
4. Apesar de a separação ou do divórcio usualmente coincidirem com o ápice do distanciamento do antigo casal e com a maior evidenciação das diferenças existentes, o melhor interesse do menor, ainda assim, dita a aplicação da guarda compartilhada como regra, mesmo na hipótese de ausência de consenso.
5. A inviabilidade da guarda compartilhada, por ausência de consenso, faria prevalecer o exercício de uma potestade inexistente por um dos pais. E diz-se inexistente, porque contrária ao escopo do Poder Familiar que existe para a proteção da prole.”
Já na ementa, portanto, se vê que a interpretação que o STJ faz da Lei converge com o que expusemos.  Esse Acórdão, mais do que apenas uma decisão do nosso Tribunal Superior sinalizando como a Lei deve ser interpretada, contém refinada doutrina, que esclarece com brilhantismo os motivos pelos quais essa é a melhor interpretação, dissecando um a um todos os argumentos tradicionalmente utilizados pelas interpretações diversas, de forma que ao final de uma leitura atenta não há como restar discordância racional ao que ali se esclarece minuciosamente.
Em suma, essa jurisprudência interpreta que:
1.      A determinação da guarda compartilhada pelo magistrado, atendendo ao pedido de um dos pais, independe de consenso entre os dois pais.
Sobre esse ponto selecionamos o seguinte extrato do referido Acórdão:
Não se pode perder de foco o melhor interesse do menor – princípio que norteia as relações envolvendo os filhos –, nem tampouco a sua aplicação à tese de que a guarda compartilhada deve ser a regra.
Sob esse prisma, é questionável a afirmação de que a litigiosidade entre os pais impede a fixação da guarda compartilhada, porquanto se ignora toda a estruturação teórica, prática e legal que apontam para a adoção da guarda compartilhada como regra.
A conclusão de inviabilidade da guarda compartilhada por ausência de consenso faz prevalecer o exercício de uma potestade inexistente. E diz-se inexistente, porque, como afirmado antes, o Poder Familiar existe para a proteção da prole, e pelos interesses dessa é exercido, não podendo, assim, ser usado para contrariar esses mesmos interesses.
Na verdade, exigir-se consenso para a guarda compartilhada dá foco distorcido à problemática, pois se centra na existência de litígio e se ignora a busca do melhor interesse do menor.
Para a litigiosidade entre os pais, é preciso se buscar soluções. Novas soluções – porque novo o problema –, desde que não inviabilizem o instituto da guarda compartilhada, nem deem a um dos genitores – normalmente à mãe, incasu, ao pai – poderes de vetar a realização do melhor interesse do menor.
Waldir Gisard Filho sustenta tese similar, ao afirmar que:
“Não é o litígio que impede a guarda compartilhada, mas o empenho em litigar, que corrói gradativa e impiedosamente a possibilidade de diálogo e que deve ser impedida, pois diante dele 'nenhuma modalidade de guarda será adequada ou conveniente.” (Grisard Filho, Waldir. Guarda Compartilhada: um novo modelo de responsabilidade parental. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, pag. 205).
Como dito anteriormente, o influxo em uma linha de pensamento importa na adoção de novo paradigma e esse, na hipótese sob discussão, é desvelado quando se conjuga um projeto interdisciplinar de construção dos novos papéis parentais com os comandos legais aplicáveis à espécie. Com a ação interdisciplinar, prevista no art. 1.584, § 3º, do CC-02, não se busca extirpar as diferenças existentes entre o antigo casal, mas sim, evitar impasses que inviabilizem a guarda compartilhada.
Busca-se, por essa ação interdisciplinar primeiro, fecundar o diálogo produtivo entre os pais; segundo, evidenciar as vantagens, para os filhos, da guarda compartilhada, terceiro: construir as linhas mestras para o exercício do Poder Familiar de forma conjunta ou, quiçá, estabelecer-se, de pronto, as regras básicas dessa nova convivência.
Por certo, esse procedimento preliminar demandará intenso trabalho de todos os envolvidos para evitar a frustração do intento perseguido, cabendo ao Estado-Juiz agir na função de verdadeiro mediador familiar, interdisciplinar, como propõe Giselle Câmara Groeninga:
“É preciso alertar que as mudanças – defendidas com a guarda compartilhada – correm o risco de, muitas vezes, ter o destino em serem 'mudanças para não mudar'. A guarda compartilhada deve ser acompanhada de modificações no tratamento que o sistema dispensa aos jurisdicionados, e na possibilidade de elaboração das separações com o planejamento da rotina futura da família transformada. Como apontado acima, a mediação familiar interdisciplinar pode ser via privilegiada para o estabelecimento da comunicação. Esta é uma combinação que tem dado resultado em diversos países. E previsto está o recurso aos profissionais técnicos e equipe interdisciplinar.” (op. cit. in: A efetividade do poder familiar, p. 163).
No entanto, mesmo diante de todo esse trabalho, não se pode descartar a possibilidade de frustração na implementação da guarda compartilhada, de forma harmoniosa, pela intransigência de um ou de ambos os pais.
Porém, ainda assim, ela deverá ser o procedimento primariamente perseguido, mesmo que demande a imposição estatal no seu estabelecimento, como se lê no § 2º do referido artigo de lei: “Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda compartilhada”.
A drástica fórmula de imposição judicial das atribuições de cada um dos pais e o período de convivência da criança sob guarda compartilhada, é medida extrema, porém necessária à implementação dessa nova visão, para que não se faça do texto legal, letra morta.
O outro ponto que esse Acórdão ajuda à esclarecer diz respeito ao próprio significado do que seja a guarda compartilhada, seu objetivo de assegurar aos filhos a participação equilibrada de mãe e pai em sua criação, indissociável da igualdade parental:
2.      Guarda compartilhada inclui custódia física da criança, a essência da guarda compartilhada é o compartilhamento da custódia física, proporcionando à criança um convívio equilibrado com ambos os pais, mesmo que para isso o magistrado precise dividir dias/horários ou formatar junto com os pais uma rotina básica para a criança.
Sobre esse ponto, selecionamos o seguinte extrato do Acórdão:
Na verdade, a força transformadora dessa inovação legal está justamente no compartilhamento da custódia física, por meio da qual ambos os pais interferem no cotidiano do filho.
Quebra-se, assim, a monoparentalidade na criação dos filhos, fato corriqueiro na guarda unilateral, que é substituída pela implementação de condições propícias à continuidade da existência de fontes bifrontais de exercício do Poder Familiar.
É na síntese, que na dialética hegeliana se traduz na criação de nova proposição a partir da fusão de uma tese e de uma antítese, que está o ideal de formação dos filhos. Daí advém o substrato lógico do grupo familiar. Daí também provém o respaldo à guarda compartilhada.
A formação da nova personalidade, em boa parte, é fruto dessa fusão de posicionamento e posturas distintas, que são combinadas na mente da criança, em composição solo, na qual conserva o que entende ser o melhor de cada um dos pais e alija o que reputa como falha.
A ausência de compartilhamento da custódia física esvazia o processo, dando à criança visão unilateral da vida, dos valores aplicáveis, das regras de conduta e todas as demais facetas do aprendizado social.
Dessa forma, a custódia física não é um elemento importante na guarda compartilhada, mas a própria essência do comando legal, que deverá ser implementada nos limites possíveis permitidos pelas circunstâncias fáticas.
De se ressaltar, ainda, que a custódia física conjunta, preconizada na guarda compartilhada, em muito se diferencia da guarda alternada. Na guarda alternada, a criança fica em um período de tempo – semana, mês, semestre ou ano – sob a guarda de um dos pais que detém e exerce, durante o respectivo período, o Poder Familiar de forma exclusiva.
A fórmula é repudiada tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência, pois representa verdadeiro retrocesso, mesmo em relação à guarda unilateral, tanto por gerar alto grau de instabilidade nos filhos - ao fixar as referências de autoridade e regras de conduta em lapsos temporais estanques - como também por privar o genitor que não detém a guarda de qualquer controle sobre o processo de criação de seu filho.
A guarda compartilhada, com o exercício conjunto da custódia física, ao revés, é processo integrativo, que dá à criança a possibilidade de conviver com ambos os pais, ao mesmo tempo em que preconiza a interação deles no processo de criação.
O estabelecimento de um lapso temporal qualquer, onde a custódia física ficará com um deles, não fragiliza esse Norte, antes pelo contrário, por permitir que a mesma rotina do filho seja vivenciada à luz do contato materno e, em outro momento, do contato paterno, habilita a criança a ter uma visão tridimensional da realidade, apurada a partir da síntese dessas isoladas experiências interativas.
  1. Conclusão
Assim, o pensamento dos pais que desejam continuar a participar da criação dos seus filhos após a separação sobre as disputas de guarda nas varas de família e a Lei da guarda compartilhada como instituto capaz de promover Justiça – um novo paradigma mais igualitário para homens e mulheres e benéfico para seus filhos – converge com a visão que o próprio Superior Tribunal de Justiça – instância máxima de interpretação dessa Lei – defendeu detalhadamente no Acórdão citado.
De fato, essa é a única interpretação sensata para Lei, senão vejamos:
  • O artigo 1.584, em seu inciso I, estabelece que a guarda compartilhada poderá ser “requerida por consenso” e, em contraposição, em seu inciso II, estabelece que a guarda compartilhada também poderá ser “decretada pelo juiz”, exatamente “em razão da distribuição de tempo necessário ao convívio deste com o pai e com a mãe”.
  • Ainda no inciso II, em seu parágrafo 2o, a Lei reafirma essa possibilidade, tornando-a imperativa, ao afirmar que “Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda compartilhada.”.
Ou seja, observando-se os dois incisos do artigo 1.584 e os dois parágrafos do inciso II, resta inquestionável que o “sempre que possível” pode se referir a qualquer coisa, menos à presença ou ausência de consenso ou acordo, já que a Lei trata explicitamente dessa variável e de como o juiz deve proceder diante dela, ou seja, decretando a guarda compartilhada quando não houver acordo entre pai e mãe.
Em suma, a “interpretação” predominante nas varas de família dos tribunais de justiça dos estados brasileiros não se trata, realmente, de uma “interpretação”, posto que invade a parte determinada objetivamente pelo legislador, trata-se, portanto, de mero desrespeito à Lei.
Destoando dessa interpretação predominante nas varas de família, o Acórdão do Superior Tribunal de Justiça acata a Lei e esclarece sobre seus motivos, fundamentos e vantagens. Não se trata de interpretação “isolada”, mas da única interpretação possível se a Lei for efetivamente dissecada com atenção e à luz de toda a problemática que ela veio cuidar. O STJ adverte explicitamente sobre isso ao afirmar que, de outra forma, a Lei será “letra morta”.
Pergunta-se: o que ainda falta para que os juízes e desembargadores dos tribunais brasileiros cumpram a Lei conforme a interpretação do STJ e encerrem a antiga e cruel injustiça que se perpetra nas varas de família contra filhos e pais?
Quantas crianças ainda serão tornadas órfãs de pais vivos antes que o paradigma passado e seus preconceitos sejam superados e essa iniquidade seja banida dos nossos tribunais?
No caso das disputas de guarda, todos os recursos necessários – Lei e interpretação do Superior Tribunal de Justiça – estão disponíveis para os nossos magistrados que quiserem realmente ministrar Justiça – quanto tempo nossos filhos ainda terão que esperar?
Quantas gerações ainda crescerão na limitadora monoparentalidade antes que nossos magistrados revejam seus dogmas, “abram a cabeça” e cumpram a Lei, cumpram seu dever?
Paulo André Amaral
Julho de 2012
“Andrada! Arranca esse pendão dos ares!  Colombo! Fecha as portas dos teus mares!”
“Navio Negreiro” Castro Alves

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