O DESAPARECIMENTO DA INFÂNCIA E AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO DE FAMÍLIA
"Os meninos sumiram" é o título de um livro traduzido recentemente para o francês a partir de original italiano de Simona Vinci. Quero acreditar que o sumiço de que se deram conta a autora e seu público corresponde a uma mudança no estatuto habitualmente atribuído às crianças. Vou resumir em que pé estaria a situação. Duas propostas tentam cobrir o espaço infância na atualidade e, de agora em diante, nesse início de século XXI: a primeira, mais antiga, tenta ver a criança como filho, ou o homem, no futuro; a segunda vê a criança como sujeito de Direitos.
1. A primeira estaria disposta a considerar a criança como o futuro do homem ( do país, da nação ). O Estado do Bem-estar pôde ser formulado a partir do Estado Nação. Cabia a família criar os filhos para que fossem os homens do futuro. A infância era o período em que não se é ainda; a criança só esperaria um dia ser adulto. À idéia de progresso no nível da humanidade, ou de uma nação, correspondia o crescimento, o desenvolvimento de uma criança. A escola adotava manuais que continham os ensinamentos a serem fornecidos a alguém que nada sabia.
2. A segunda enfatiza a criança como sujeito de Direitos. No Estado técnico-administrativo atual, a criança é (não se trata mais da dimensão um dia vou ser...), uma vez que "criança" já é sujeito. A ela são assegurados direitos, cabendo aos pais defenderem os filhos na luta dos direitos da criança. A etapa seguinte, prenunciada por alguns sinais, seria atribuir à criança o rótulo sujeito da informação ou, se quiserem, sujeito para a midia. Com isso, o jovem tornou-se um consumidor e isso determina uma certa prática no que se refere à infância: a criança é como qualquer um...consumidor. Ela é encontrada em nichos, como dizem os publicitários: o famoso ninho que se via na marca Nestlé (sugerindo cuidados para com a criança), agora é nicho. Em vez de manuais, o jovem recebe na escola (no cursinho) apostilas: cada capítulo de uma vez, sem uma seqüência já determinada. A juventude é o ideal de toda a população. Só que o slogan para ser sempre jovem está fazendo desaparecer a etapa da infância que era diferenciada em contraposição com o que já começava a perder a força da juventude. As medicações já ao inteiro dispor do grande público garantem prolongamento da atividade sexual, em outros termos, a eterna juventude do corpo.
As propostas 1 e 2, acima resumidas, merecem nossa atenção. Elas são formuladas em termos inteiramente aceitáveis em nosso espaço cultural. O desafio para nós é redescobrir os meninos quando já não há mais infância.
Diria, para dar início aos debates, que as duas propostas não recobrem inteiramente o espaço infância. Há um real que lhes escapa. Qual é? A Psicanálise encontra-se envolvida com a questão. Ao estar assim tão próxima da questão, a Psicanálise é convidada a aderir, ora à primeira proposta (nesse caso, restaria à Psicanálise dizer: Só há Psicanálise do filho), ora à segunda (nesse caso, a Psicanálise sustentaria: A criança é sujeito). O que de melhor cabe à Psicanálise seria acompanhar de perto o que está acontecendo, inclusive em famílias recompostas, ou em outras formas de filiação inventadas pela sociedade.
A permanência da família ainda que reorganizada ou, como já se costuma dizer, mesmo recomposta como instituição de base em nossa sociedade parece exigir do pensamento teórico e da prática jurídica novos institutos jurídicos que representam verdadeira atualização e progresso nessa matéria por vezes tão delicada.
Temos que constatar que a organização e dissolução do contrato que envolve um casal passou a ser de domínio privado: a liberdade individual de cada um é reconhecida matéria de foro íntimo. Mas a criança, seu direito à infância, à educação são atendidos graças à ordem pública, escapando à liberdade de cada um, ou seja, tanto dos pais, quanto da própria criança. A ideologia vigente na mentalidade das pessoas, com o consentimento da instituição jurídica, ainda pesa quando se reconhece a culpa como causa do divórcio, quando se recompensa a inocência com a atribuição de guarda dos filhos e com outros signos de distinção. Temos que constatar que a co-parentalidade ou a guarda compartilhada não são comuns. Esta última ainda é exceção.
Na prática, continuamos a pensar em termos de pai com direito a visita, "residência principal para a criança" e outras distinções dificilmente sustentáveis, pois têm como conseqüência desresponsabilizar os pais, fixá-los numa relação de força mantendo-os sob tutela judiciária. A permanência de direitos e deveres, a igualdade de direitos da criança qualquer que seja a situação dos pais, vão além do divórcio e da separação. Espera-se que a autoridade parental seja exercida no casamento e fora dele. A guarda compartilhada ‹ que implicaria a supressão de noções como "residência habitual" e a necessidade de convite para um cônjuge ter acesso à casa do outro cônjuge ‹ significa reconhecimento e respeito por parte de cada um de suas próprias obrigações e direitos. Haveria, então, uma redução considerável de processos junto ao Juizado da Família.
Garantir a filiação, limitando os efeitos destruidores de uso não advertido da verdade biológica (descobertas genéticas e métodos de procriação), até chegarmos a dispensar o comparecimento diante do juiz quando os cônjuges põem fim a uma união, estes seriam alguns itens do que tem se apresentado entre nós como programa de renovação do direito de família. Os cônjuges, diríamos, não têm que ser protegidos contra a própria vontade, não sendo a instituição judiciária o único, nem o último, espaço do rito em nossa atualidade. Soltar as amarras e favorecer o diálogo não seria, de maneira nenhuma, desinstitucionalizar o casamento, mas, sim, valorizá-lo como ato da vontade a ser vivido em cerimônia ritualizada e solene, sendo a sua anulação ruptura de um contrato particular.
Por fim o divórcio e seu encaminhamento, quando se adota como critério a culpa, tem sido motivo de conflitos, violência e danos emocionais, ao se fazer reconhecer o não respeito de um trato pela força ou pela violência a ponto de acarretar sofrimento moral e físico. O procedimento sabidamente envenena o conflito, envolve lamentavelmente familiares e amigos como testemunhos, quando, ao contrário, o que deveria prevalecer seria a natureza privada da decisão. Como poderíamos esperar que os cônjuges em vias de separação estabeleçam a paz e o bom entendimento em se tratando dos filhos se, ao mesmo tempo, eles adotam o critério de culpabilidade de um cônjuge frente ao outro que se faz merecedor de tratamento especial? Por outro lado, a criança vale pelo que é no presente da sua vida ‹ a aposta será ouvi-la sem perder sua qualificação de criança.
1. A primeira estaria disposta a considerar a criança como o futuro do homem ( do país, da nação ). O Estado do Bem-estar pôde ser formulado a partir do Estado Nação. Cabia a família criar os filhos para que fossem os homens do futuro. A infância era o período em que não se é ainda; a criança só esperaria um dia ser adulto. À idéia de progresso no nível da humanidade, ou de uma nação, correspondia o crescimento, o desenvolvimento de uma criança. A escola adotava manuais que continham os ensinamentos a serem fornecidos a alguém que nada sabia.
2. A segunda enfatiza a criança como sujeito de Direitos. No Estado técnico-administrativo atual, a criança é (não se trata mais da dimensão um dia vou ser...), uma vez que "criança" já é sujeito. A ela são assegurados direitos, cabendo aos pais defenderem os filhos na luta dos direitos da criança. A etapa seguinte, prenunciada por alguns sinais, seria atribuir à criança o rótulo sujeito da informação ou, se quiserem, sujeito para a midia. Com isso, o jovem tornou-se um consumidor e isso determina uma certa prática no que se refere à infância: a criança é como qualquer um...consumidor. Ela é encontrada em nichos, como dizem os publicitários: o famoso ninho que se via na marca Nestlé (sugerindo cuidados para com a criança), agora é nicho. Em vez de manuais, o jovem recebe na escola (no cursinho) apostilas: cada capítulo de uma vez, sem uma seqüência já determinada. A juventude é o ideal de toda a população. Só que o slogan para ser sempre jovem está fazendo desaparecer a etapa da infância que era diferenciada em contraposição com o que já começava a perder a força da juventude. As medicações já ao inteiro dispor do grande público garantem prolongamento da atividade sexual, em outros termos, a eterna juventude do corpo.
As propostas 1 e 2, acima resumidas, merecem nossa atenção. Elas são formuladas em termos inteiramente aceitáveis em nosso espaço cultural. O desafio para nós é redescobrir os meninos quando já não há mais infância.
Diria, para dar início aos debates, que as duas propostas não recobrem inteiramente o espaço infância. Há um real que lhes escapa. Qual é? A Psicanálise encontra-se envolvida com a questão. Ao estar assim tão próxima da questão, a Psicanálise é convidada a aderir, ora à primeira proposta (nesse caso, restaria à Psicanálise dizer: Só há Psicanálise do filho), ora à segunda (nesse caso, a Psicanálise sustentaria: A criança é sujeito). O que de melhor cabe à Psicanálise seria acompanhar de perto o que está acontecendo, inclusive em famílias recompostas, ou em outras formas de filiação inventadas pela sociedade.
A permanência da família ainda que reorganizada ou, como já se costuma dizer, mesmo recomposta como instituição de base em nossa sociedade parece exigir do pensamento teórico e da prática jurídica novos institutos jurídicos que representam verdadeira atualização e progresso nessa matéria por vezes tão delicada.
Temos que constatar que a organização e dissolução do contrato que envolve um casal passou a ser de domínio privado: a liberdade individual de cada um é reconhecida matéria de foro íntimo. Mas a criança, seu direito à infância, à educação são atendidos graças à ordem pública, escapando à liberdade de cada um, ou seja, tanto dos pais, quanto da própria criança. A ideologia vigente na mentalidade das pessoas, com o consentimento da instituição jurídica, ainda pesa quando se reconhece a culpa como causa do divórcio, quando se recompensa a inocência com a atribuição de guarda dos filhos e com outros signos de distinção. Temos que constatar que a co-parentalidade ou a guarda compartilhada não são comuns. Esta última ainda é exceção.
Na prática, continuamos a pensar em termos de pai com direito a visita, "residência principal para a criança" e outras distinções dificilmente sustentáveis, pois têm como conseqüência desresponsabilizar os pais, fixá-los numa relação de força mantendo-os sob tutela judiciária. A permanência de direitos e deveres, a igualdade de direitos da criança qualquer que seja a situação dos pais, vão além do divórcio e da separação. Espera-se que a autoridade parental seja exercida no casamento e fora dele. A guarda compartilhada ‹ que implicaria a supressão de noções como "residência habitual" e a necessidade de convite para um cônjuge ter acesso à casa do outro cônjuge ‹ significa reconhecimento e respeito por parte de cada um de suas próprias obrigações e direitos. Haveria, então, uma redução considerável de processos junto ao Juizado da Família.
Garantir a filiação, limitando os efeitos destruidores de uso não advertido da verdade biológica (descobertas genéticas e métodos de procriação), até chegarmos a dispensar o comparecimento diante do juiz quando os cônjuges põem fim a uma união, estes seriam alguns itens do que tem se apresentado entre nós como programa de renovação do direito de família. Os cônjuges, diríamos, não têm que ser protegidos contra a própria vontade, não sendo a instituição judiciária o único, nem o último, espaço do rito em nossa atualidade. Soltar as amarras e favorecer o diálogo não seria, de maneira nenhuma, desinstitucionalizar o casamento, mas, sim, valorizá-lo como ato da vontade a ser vivido em cerimônia ritualizada e solene, sendo a sua anulação ruptura de um contrato particular.
Por fim o divórcio e seu encaminhamento, quando se adota como critério a culpa, tem sido motivo de conflitos, violência e danos emocionais, ao se fazer reconhecer o não respeito de um trato pela força ou pela violência a ponto de acarretar sofrimento moral e físico. O procedimento sabidamente envenena o conflito, envolve lamentavelmente familiares e amigos como testemunhos, quando, ao contrário, o que deveria prevalecer seria a natureza privada da decisão. Como poderíamos esperar que os cônjuges em vias de separação estabeleçam a paz e o bom entendimento em se tratando dos filhos se, ao mesmo tempo, eles adotam o critério de culpabilidade de um cônjuge frente ao outro que se faz merecedor de tratamento especial? Por outro lado, a criança vale pelo que é no presente da sua vida ‹ a aposta será ouvi-la sem perder sua qualificação de criança.