OS EFEITOS DO TIPO DE GUARDA, NA DINÂMICA DA CRIANÇA PARTE 1-2
OS EFEITOS DO TIPO DE GUARDA, COMPARTILHADA OU EXCLUSIVA – LEGAL OU DE FATO - NA DINÂMICA DA CRIANÇA: ESTUDOS DE CASOS
Parte 1-2
FLORIANÓPOLIS
2003
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
CURSO DE MESTRADO
Os efeitos do tipo de guarda, compartilhada ou exclusiva – legal ou de fato - na dinâmica da criança: estudos de casos
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Curso de Mestrado, da Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Psicologia.
Orientadora: Profª. Dra. Maria Juracy Filgueiras Toneli.
Florianópolis
2003
RECONHECIMENTOS
DEDICO
este trabalhos aos meus filhos, Matheus e Gustavo e a minha ex-esposa, Patricia, por serem exemplos de que a guarda compartilhada é uma possibilidade viável, e que, os pais são sempre pais, independente de estarem separados.
COMPARTILHO
este trabalho com o meu amigo Valter, pelo incentivo e disponibilidade para me escutar, pelas criticas e elogios.
AGRADEÇO
ao Professor Kleber, por acreditar na minha proposta de trabalho, e ter aberto as portas do mestrado para mim. Agradeço à minha orientadora, pela disposição e competência em corrigir o meu percurso, exigindo sempre um rigor teórico compatível à um trabalho acadêmico, bem como, por respeitar o meu tempo e o meu limite.
Agradeço também aos professores e colegas do mestrado, principalmente à Profª Dra. Mara Lago, por apontar os equívocos iniciais da minha pesquisa, e ao Mário, por se tornar meu amigo e por trazer sabiamente algo cômico no meio do desespero.
“podemos pensar, como Freud e Lacan, que não há progresso, uma vez que o que se ganha de um lado, se perde de outro, embora não saibamos discernir o que se ganha e o que se perde” (Lied, Inezinha Brandão)
RESUMO
SILVA, Evandro Luiz. Os efeitos do tipo de guarda, compartilhada ou exclusiva – legal ou de fato – na dinâmica da criança: estudos de casos. Florianópolis, 2003. 129p. Dissertaçao (Mestrado em Psicologia) – Curso de Pós Graduação em Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina.
Orientadora: Maria Juracy Filgueiras toneli
Defesa: 12/12/2003
Diante do aumento do número de casamentos desfeitos, a guarda dos filhos que convivem com pais separados é um assunto de grande importância. Tanto no âmbito do sistema judiciário quanto em consultórios de Psicologia é crescente o número de pais que vêm a procura de soluções para suas separações e de orientações quanto às suas decorrências no que diz respeito à vida de seus filhos. Este trabalho consistiu fundamentalmente numa investigação dos efeitos do tipo de guarda, compartilhada ou exclusiva – legal ou de fato - na dinâmica da criança, por meio de estudos de casos. Foram realizadas avaliações psicológicas de quatro crianças: entrevistas clínicas e anamnese com os pais e avaliação diagnóstica dos filhos – sessões lúdicas e testes, nos moldes de uma perícia psicológica na Vara de Família. Verificou-se, dessa forma, a dinâmica da criança, desde o comportamento observado pelos pais às questões apresentadas pela criança durante a avaliação, e também o seu comportamento diante da guarda em duas situações: quando os pais estão em conflito e quando há uma relação regular ou boa entre eles. Também se pôde verificar em que situações as crianças entrevistadas apresentaram sintomas, quando a guarda funcionou e quando não, e como uma guarda legal estabelecida pode se transformar em outra, de fato. Para os casos estudados, conclui-se que quando os pais estão em conflitos, a guarda exclusiva não funciona, não acontecendo as visitas, o que acaba por levar a um afastamento dos filhos em relação a quem não detém a guarda. Nestes casos, as crianças apresentaram uma série de sintomas. Já, quando não há conflitos entre os pais, a guarda exclusiva comporta-se como guarda compartilhada, e neste caso, a criança não apresentou sintomas. Por fim, conclui-se que o funcionamento da guarda de filhos está especialmente relacionada a uma boa relação entre os pais.
Palavras chave: Casamentos desfeitos, guarda compartilhada, visitas, sintomas
ABSTRACT
SILVA, Evandro Luiz. Os efeitos do tipo de guarda, compartilhada ou exclusiva – legal ou de fato – na dinâmica da criança: estudos de casos. Florianópolis, 2003. 129p. Dissertaçao (Mestrado em Psicologia) – Curso de Pós Graduação em Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina.
Orientadora: Maria Juracy Filgueiras toneli
Defesa: 12/12/2003
Nowadays we can observe the increase of broken family’ relationships, and the custody of their kids is a subject of great importance. Even in the Judiciary as in doctor’s offices of Psychology, it’s increasing the number of parents that are coming looking for information and solutions for their separations and its results over their children’s life. Basically this work consisted of an inquiry about the effects of the modality of joint custody, shared by parents or exclusive responsability by one of them - legal or informal - in the dynamics of the child, through study of cases. The applied method was made by the accomplishment of psychological evaluation of four children: clinical interviews and anamnesis with their parents and diagnostic evaluation of the children - playful sessions and tests, as a shape of a psychological skill in the Children’s Custody and Families Department.
We could then verify the dynamics of the children, since the observed behaviors by the parents until the questions presented for these children during the evaluation, as well as we could observe and describe the behavior of the custody, when the parents are in conflicts themselves and when there are an acceptable or good relationship between them. Also we could verify when situations the interviewed children was presenting symptoms and when not, when the custody’s modality really functioned and when not, and how an established legal custody can change itself into another one, in fact. For the studied cases we conclude that when the parents have themselves relationship conflicts, the joint custody doesn’t work, visits won’t happen, and it increases distance between the children and the parent wich don’t have the custody. In these circumstances, the children had different kind of symptoms. On the other hand when parents conflicts doesn’t exists, the exclusive custody behaves itself as a joint custody, and in that case the child had no symptom. Finally, we conclude that the custody of children is straight conected to a good relationship between their parents.
SUMÁRIO
RECONHECIMENTOS 4
RESUMO 6
ABSTRACT 7
SUMÁRIO 8
1. INTRODUÇÃO 10
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 18
2.1 A criança, a mãe e o pai: uma retrospectiva. 18
2.2 Questões Jurídicas 24
2.3. Questões de Gênero: masculinidade/feminilidade; maternidade/paternidade 37
2.4 Questões Psicológicas 46
3. MÉTODO 66
4. ESTUDOS DE CASOS: ENTREVISTAS, SESSÕES E DISCUSSÕES 70
4.1. Caso 1 70
4.1.1 Entrevistas com a mãe 70
4.1.2 Entrevistas com o pai 73
4.1.3 Sessões com Karina 75
4.1.4 Resultados dos testes 76
4.2 – Casos 2 e 3 77
4.2.1. Entrevistas com a mãe: 77
4.2.2 Entrevistas com o pai 79
4.2.3 Sobre o primeiro contato com a família há 4 anos. 82
4.2.4. Sessões com Gil 84
4.2.5 Resultados dos testes 86
4.2.6. Sessões com Melina 86
4.2.7 Resultados dos testes 87
4.3. Caso 4 87
4.3.1. Entrevistas com a mãe 88
4.3.2 Entrevistas com o pai 89
4.3.3 Sessões com Rodrigo 92
4.3.4 Resultados dos testes 93
4.4. Discussões Sobre os Casos e considerações finais 94
4.4.1 Tabela comparativa com dados dos quatro casos 94
4.4.2 Discussão 95
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 117
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 122
7. ANEXO 128
7.1 Roteiro de entrevistas semi-estruturadas para os pais 128
1. INTRODUÇÃO
O interesse em desenvolver esta pesquisa surgiu a partir do meu trabalho como perito e assistente técnico na área psicológica em processos na Vara de Família; como mediador , em consultório, nos casos de separações; como assessor em escolas, e, no atendimento psicológico a crianças. No decorrer desses trabalhos, tenho observado diferenças na dinâmica infantil , dependendo do tipo de guarda a que está submetida a criança - compartilhada ou exclusiva -, e que essas diferenças se apresentam desde os comportamentos manifestos aos significados latentes .
Nesta prática, constatei, quando da avaliação ou do atendimento a crianças filhas de pais separados, a presença de sintomas que tiveram origem na separação dos pais. Na sua grande maioria, os sintomas apresentados são: dificuldades cognitivas, ansiedade, agressividade e depressão. No entanto, verifiquei que esses sintomas têm relação muito mais com a falta que faz um dos pais do que com o distrato do casamento. Nas fantasias dessas crianças, o progenitor ausente abandonou-as. Também observei que o afastamento das crianças de um dos pais decorre das desavenças conjugais e do conseqüente estabelecimento da guarda que não atende as necessidades dos envolvidos.
Outro aspecto revelador é o fato que no Direito de Família as normas doutrinárias e jurisprudenciais, em geral, são rígidas e baseadas numa forma de organização da família na qual pai e mãe tinham papéis definidos e distintos: ao pai cabia o sustento da prole e, à mãe, o cuidado, a educação e o afeto, como se esta fosse a única forma de a família se organizar.
Contudo, emergiram novas representações sociais da família, fruto, entre outros aspectos, da reconfiguração da posição social da mulher e das modificações ocorridas na tradicional divisão sexual do trabalho. A distinção entre os papéis de pai e mãe tornou-se menos clara na medida em que ambos contribuem para o sustento da família e dividem os cuidados com os filhos.
Quando se trata da separação destes pais e da estipulação da guarda sobre os filhos menores, parece que, tanto o Judiciário quanto os pais, ainda tomam como referência aquele modelo de família, no qual é apanágio do pai o pagamento da pensão alimentícia (sustento da família) e da mãe, o cuidado dos os filhos (guarda exclusiva). Basear-se nesse modelo de família pode trazer conseqüências indesejáveis para a criança, já que não corresponde à família de pais e mães que procuram obter ou compartilhar a guarda dos filhos, onde há divisão econômica (mulheres trabalhando fora e contribuindo para o sustento do lar) e de divisão nos cuidados com os filhos (homens que dividem com elas os cuidados com os filhos ).
A perda do contato com a mãe ou com o pai pode gerar certos sintomas, levando as crianças à necessidade de atendimento psicológico, como tenho observado em meu trabalho. Logo, reconvocar um modelo de família que não corresponde à clientela que procura psicólogos e juízes para garantir o direito de convivência com seus filhos, pode fazer com que aos poucos as crianças percam o contato com um dos pais, aquele que não detém a guarda. Parece-me que a guarda exclusiva está associada à organização de família na qual cabia à mãe o cuidado dos filhos e ao pai o sustento (pensão alimentícia). A guarda compartilhada com alternância de casas, por sua vez, está associada à organização familiar das pessoas que procuram “guardar” os seus filhos após a separação – famílias em que ambos os pais contribuem financeira e afetivamente para o bem-estar dos filhos.
Neste caso, quando ambos os pais concorrem para a criação dos filhos, não há por que confiar a somente um a continuidade dessa tarefa. Acredito que é pensando que a guarda deva ser estabelecida de acordo com a forma de organização da família, que Dolto (1989, p.45) escreve:
Estou pensando no exemplo de um casal que se separou e no qual era o pai quem sempre havia cuidado do bebê. A mãe reivindicou o filho por ser a mãe. Ora, ocorre que ‘mamãe’ era o pai, que vivia dentro de casa, enquanto que a mãe ganhava a vida fora. Assim, ela saía de manhã e voltava à noite; não era, em absoluto, a mamãe habitual do bebê. Portanto, é preciso considerar cada caso em sua particularidade (...). Quando a criança é criada por uma pessoa assalariada, e não pela mãe, não vemos porque, de modo algum, ela deva ser preferencialmente confiada à mãe do que ao pai.
Concordo plenamente com Françoise Dolto, quanto à singularidade de cada caso. Em algumas separações, os vínculos dos filhos com um dos pais são tão empobrecidos, em face do pouco ou nenhum contato afetivo, que compartilhar casas poderia ser prejudicial. Por outro lado, filhos acostumados com a presença efetiva de ambos – pai e mãe - em suas vidas e sendo privados do contato freqüente com um deles, igualmente poderão ser prejudicados por esta situação.
Pude observar, quando do atendimento psicológico destas crianças, que a perda ou o contato esporádico com um dos pais, que até então era presente nas suas vidas, tem significado muito diferente de outras perdas, como por exemplo, a perda real do pai ou da mãe por morte. Naquelas, na maioria das vezes, o desapego das crianças ocorre a partir da fantasia de terem sido abandonadas ou serem a causa da separação, uma vez que passam a não conviver com ambos (no caso da guarda exclusiva) e não podem aos poucos ir organizando e dando sentido à separação, a partir do convívio com pai e mãe separados. Neste caso, comumente, a imagem do progenitor que não detém a guarda é formada com a interferência daquele que a detém, na maioria das vezes influenciada por sentimentos de rancor por não conseguir separar o ex-cônjuge da função de pai ou de mãe, dadas as desavenças conjugais existentes. Já nas perdas por mortes, as fantasias acontecem de acordo com a elaboração do luto, embora também influenciadas pelas significações que o progenitor presente atribui ao que faleceu.
Portanto, a imagem que as crianças têm ou vão construir com a ajuda do progenitor presente, sobre o ausente, tem um significado diferente, pois os sintomas diferem desde a sua constituição: para os filhos que deixam de conviver com um dos pais a partir da separação, observei, no consultório, que as suas fantasias constituintes dos sintomas giram em torno da crença de que foram abandonados pelo progenitor ausente. Na perda por morte, não se apresenta, em geral, nas crianças atendidas em consultório, o medo do abandono.
Do ponto de vista jurídico, parece que as crianças estão amparadas, no que se refere aos bens materiais, pela pensão alimentícia. No entanto, a falta psíquica/afetiva provocada pela ausência de um dos pais poderá trazer conseqüências graves de outra ordem que não a material. Assim, uma separação seguida do estabelecimento de uma guarda que não atende as necessidades do menor, pode levar muitas vezes à ausência de um dos pais na sua vida.
O tipo de guarda mais comum é aquele que segue a jurisprudência dominante, que é a guarda exclusiva da mãe com visitas quinzenais, em finais de semana alternados, por parte do pai. A guarda, do ponto de vista do Direito, define a quem cabe decidir tudo na vida da criança, bem como responder por ela. Na guarda exclusiva, o cônjuge que não a detém – cujas visitas ao filho são preestabelecidas – não pode interferir nas decisões tomadas pelo cônjuge que a detém. Na guarda compartilhada, por outro lado, pai e mãe respondem pela criança e tomam decisões conjuntas relativas à vida dos filhos.
A guarda compartilhada tem vários desdobramentos. Tudo dependerá do acordo entre os pais ou das decisões judiciais. As crianças poderão ter uma única casa, a do pai ou a da mãe; duas casas com dias alternados em cada uma delas; duas casas, alternando semana, mês, semestre ou até mesmo ano letivo, entre outras alternativas. As possibilidades são, portanto, variadas e as conseqüências de cada uma delas poderão repercutir de formas diferentes na vida de cada filho.
A determinação judicial da guarda, em alguns casos, tem por fundamento entre outros, um parecer psicológico. No entanto, na maioria das vezes, baseia-se somente nos comportamentos manifestos da criança, relatados pelo Serviço Social, que não pode e nem tem a pretensão de abordar as questões latentes significantes daqueles comportamentos. A exemplo, observo alguns casos, o que relata Dolto falando de uma criança que volta da casa do pai para a da mãe, que detém a guarda exclusiva: “Ele vomita, mas não é, de modo algum, por não amar o pai; é que ele fica perturbado por revê-lo depois de tanto tempo” (Dolto, 1989, p.55).
Acho importante produzir conhecimento que permita responder à pergunta acerca dos efeitos do tipo de guarda, compartilhada ou exclusiva – legal ou de fato - sobre a dinâmica infantil, por meio de estudos de casos. A ausência desse conhecimento leva muitos juízes e/ou os próprios pais a tomarem decisões sobre a vida das crianças que poderão ter conseqüências psíquicas indesejáveis. Saber das relações desses comportamentos com o desejo da criança é fundamental para se repensar a maneira de estabelecer a guarda.
A relevância desta pesquisa também se sustenta por não ter encontrado em minha revisão de literatura artigos abordando a pergunta de pesquisa aqui lançada. Os trabalhos publicados, na grande maioria, consistem em posicionamentos e conceitos jurídicos ou opiniões sobre as conseqüências psicológicas dos tipos de guarda, sem qualquer pesquisa que os fundamente. Outros abordam, de maneira indireta, as representações que os pais têm sobre os comportamentos dos filhos, sem, contudo, levar em consideração a dinâmica da criança – das questões manifestas às questões latentes.
A partir das considerações acima, este estudo buscou responder ao seguinte problema de pesquisa: Quais os efeitos do tipo de guarda, compartilhada ou exclusiva – legal ou de fato - sobre a dinâmica infantil?
Iniciei a pesquisa com as seguintes suposições:
- As concepções dos atores sociais adultos (pais, assistentes sociais, educadores, juízes, advogados, entre outros envolvidos) sobre as causas dos comportamentos manifestos das crianças não coincidem com as questões latentes destas.
- Nos processos em que não são realizadas perícias psicológicas, o julgamento baseia-se em comportamentos observados pelos pais e pelas assistentes sociais, não contemplando o desejo da criança.
- As questões latentes dos filhos guardam relação estreita com a ausência/presença (física e simbólica) de um dos pais: aquele que não detém a guarda.
- As questões latentes dos filhos demonstram a necessidade de terem contato freqüente com seus pais, quando estes foram presentes durante o casamento.
O objetivo geral foi investigar as implicações do tipo de guarda, compartilhada ou exclusiva – legal ou de fato - sobre a dinâmica infantil. Os objetivos específicos foram investigar se há diferenças na dinâmica infantil de acordo com o tipo de guarda praticado, bem como entre as questões manifestas trazidas pelos pais e filhos e as latentes observadas na avaliação psicológica; verificar se as questões latentes dos filhos têm relação com a falta de um dos pais, aquele que não detém a guarda, e verificar a importância da avaliação psicológica em processos de guardas de filhos.
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
2.1 A criança, a mãe e o pai: uma retrospectiva.
“É em função das necessidades e dos valores dominantes de uma dada sociedade que se determinam os papéis respectivos do pai, da mãe e do filho” (Badinter, 1985, p. 26).
Como diz a citação em epígrafe, os papéis de pai, mãe e filho vão estar sempre inseridos em uma determinada sociedade e em um momento histórico específico, que ditarão como a maioria das famílias desse contexto se organizam. Neste capítulo, privilegiei um recorte historiográfico com o intuito de entender como as sociedades se constituem em suas relações e como os papéis nelas desempenhados são fenômenos sociais e não naturais.
É importante ter clareza quanto às várias possibilidades de organização familiar, pois penso que, para se estabelecer o tipo de guarda, deve-se ter em conta as relações e vínculos entre pais e filhos, que têm a ver com a forma de a família se organizar. Nesse aspecto, acho importante fazer uma retrospectiva das relações familiares, no decorrer dos séculos, para entender como os papéis de pai, mãe e filho são construídos de acordo com cada época e cultura, respondendo assim às necessidades sociais.
Esse percurso será norteado pelos autores Philippe Ariès (1981) e Elisabeth Badinter (1985), que fornecem subsídios importantes para conhecer e entender as relações familiares e a criança ao longo da história do ocidente, a partir da sociedade francesa.
Resgatando a história, identifica-se que nas sociedades medievais, de acordo com ARIÈS (id.), as crianças viviam em uma situação de anonimato perante a família, convivendo com suas amas-de-leite que as levavam após o nascimento e só as devolviam aos pais quando já contavam entre quatro e sete anos de idade; isso quando não morriam - pois os índices de óbitos eram grandes. As crianças eram entendidas como seres sem alma. Seus pais não estabeleciam vínculos com elas, tampouco se preocupavam com sua saúde. A sobrevivência destes seres pequenos estava ligada à sorte, pois era muito comum o infanticídio até o século XVII. A morte dos filhos era encarada muito naturalmente, sem qualquer desespero, pois uma criança era facilmente substituída. A negligência e o abandono eram comumente bem aceitos na sociedade. A partir da devolução das crianças pelas amas às famílias, passavam a ser consideradas como adultos em miniaturas. Vestiam-se como adultos e eram inseridas no mundo deles sem restrições. Nessas sociedades não existia o “sentimento de infância” (Ariès, 1981).
Badinter (1985), por sua vez, trouxe questionamentos fundamentais que levam a entender que o amor materno, como qualquer outro, é construído de acordo com as exigências sociais de cada época, e que o “instinto materno” é um mito. São questionamentos importantes como: se havia instintos, porque as mães se recusavam a amamentar e a educar seus filhos? Por que entregavam seus filhos a amas desconhecidas, sem quaisquer referências, quando já haviam perdido outros filhos nas mãos da mesma mulher? Por que os entregavam às amas e não mais se preocupavam, não faziam visitas e até se esqueciam de ir buscá-los?
A entrega dos filhos a amas-de-leite era um fenômeno generalizado em todas as camadas sociais, revelando verdadeiro abandono moral e afetivo por parte da mãe, do pai e de toda a sociedade, deixando as crianças em situações catastróficas. Moralistas do século XVIII ressaltam que os pais eram mais exigentes na escolha de uma criada ou de um serviçal de estrebarias do que de amas de leite (Badinter, 1985).
Não param aí os questionamentos possíveis. Havia uma concordância em certas sociedades de se matar as filhas mulheres. Havia, também, o que Badinter (1985) chamou de amor relativo. Amava-se mais o menino do que a menina, mais o primogênito do que o caçula, o filho mais velho era amamentado e cuidado pela mãe. Segundo a autora, até o final do século XVII e início do século XVIII, o comportamento da mãe oscilava entre a indiferença e a rejeição.
Há pesquisas que indicam que as mães não se apegavam a seus filhos porque a possibilidade de morte era grande (Badinter, 1985, p. 138-140): mais de 25% das crianças morriam nos primeiros meses, e 2/3 das crianças que iam para amas de leite. No entanto, comungo com a leitura de Badinter de que “não é porque as crianças morriam como moscas que as mães não se interessavam por elas. Mas é em grande parte porque as mães não se interessavam que suas crianças morriam em tão grande número” (Badinter, 1985, p. 87).
A partir do século XVII, as crianças começaram, timidamente, a receber um outro olhar, embora muito aquém dos dias de hoje. Do anonimato, passaram a seres engraçadinhos, que proporcionavam diversão. A aprendizagem no trabalho com os adultos passa a ser substituída pelas escolas, e começa uma preocupação com o infanticídio. “No século XVII, de um infanticídio secretamente admitido passou-se a um respeito cada vez mais exigente pela vida da criança” (Ariès, 1978, p. 18).
A saúde da criança passou a ser uma preocupação, inclusive do Estado ao preconizar a importância da população para um país, atribuindo à criança um valor mercantil, uma vez que ela produzirá riquezas. Com isso, a presença da mãe junto a seu filho é cobrada de forma ilimitada. A maternidade passa a ser um ideal, e assumi-la, sacrificando-se pelo filho, é característica da boa mãe, a santa mulher. Logo, não assumir a maternidade é assumir-se como mãe má, indigna e mulher incapaz. O trabalho feminino é condenado e o universo da mulher passa a ser o seu lar, enquanto ao pai cabe a questão econômica. (Badinter, 1985).
É só a partir do século XIX que a família passa a se organizar em torno da criança, dando-lhe um papel de destaque. Os pais começam a se interessar pelos estudos de seus filhos, e a afetividade que até então não existia, ou não era declarada e atuada, toma espaço de uma forma crescente. Marca-se aí a transformação da família: passa-se do público ao privado.
A sociedade que não se distinguia da família e até se misturava com ela - as casas eram uma continuidade da rua e dos negócios -, passa a um segundo plano. As casas, que antes não permitiam qualquer intimidade e individualidade, exigindo o trânsito através dos cômodos, pois não havia corredor nem distinção de funções e pessoas para cada cômodo, passam a ter divisões, e cada cômodo respeita a privacidade e a função que lhe são exigidas. A família transforma-se, os valores são outros. Segundo Ariès, “A família deixou de ser apenas uma instituição do direito privado para a transmissão dos bens e do nome e assumiu uma função moral e espiritual, passando a formar os corpos e as almas” (Ariès, 1981, p. 277).
No século XX, com os movimentos feministas, principalmente a partir de 1960, intensifica a busca da igualdade social entre homens e mulheres, marcando de forma acentuada a entrada da mulher no mercado de trabalho, quer por necessidades financeiras, quer por realização profissional. O advento da pílula anticoncepcional marcou, também, a possibilidade de escolha quanto à maternidade.
Em decorrência dessas transformações, a forma de organização familiar em que a mulher também contribui para o seu sustento ganhou e continua ganhando proporções consideráveis. No estudo e pesquisa sobre a guarda compartilhada e a exclusiva, destacam-se duas formas de organização familiar: uma, em que ambos os pais contribuem econômica e afetivamente junto à família, e outra, na qual a mãe, contribuindo ou não economicamente, encarrega-se sozinha dos cuidados dos filhos.
Essa última forma de organização familiar faz pensar o papel do pai como somente o provedor de bens, com uma função econômica, sem envolvimento com os compromissos dos filhos e emocionalmente distante. Há aqui uma reprodução do discurso social que define ser aquele o papel do pai. Em alguns casos, tal discurso é tão internalizado e cristalizado, que é como se realmente fosse determinado biologicamente, e não uma construção histórica e social. Parece que alguns pais, igualmente comparados a algumas mães, estão presos a um determinismo biológico inexistente, entendendo como natural e herdado o papel de mãe – a que cuida da casa e filhos – e de pai – o que cuida do sustento familiar. Há uma tendência generalizada de se acreditar que processos sociais são naturais, de confundir o cultural com o natural, determinado biologicamente. É nessa linha que muitos pensam que a mulher nasce naturalmente determinada para o cuidado da prole.
Assim sendo, parece-me que as relações pais e filhos – a forma de organizar a família – antecedem à determinação do tipo de guarda. Além da capacidade e disposição, deve-se verificar os vínculos existentes. Acredito que a guarda só será estabelecida de uma forma razoável quando os envolvidos nesse processo puderem fazer uma leitura da dinâmica familiar, dada a singularidade que lhe é peculiar.
2.2 Questões Jurídicas
Seguindo a contextualização histórica da família, abordada no capítulo anterior, penso que as questões jurídicas, por certo, também respondem às necessidades sociais de cada época, estando o Direito de Família, igualmente, atento às formas de organizações familiares.
Corroborando essa assertiva, verifica-se o fato de que referido Direito abriu espaço à guarda compartilhada, tendo em vista a forma de organização atual de várias famílias: um e outro cônjuge participando igualmente e ativamente da vida dos filhos – o que, embora não corresponda a muitos casos, não é raridade. Nessa perspectiva, tramitaram no ano de 2002, pelo Congresso Nacional, alguns Projetos de Lei, como o do Deputado Tilden Santiago, de emendas ao novo Código Civil, que entrou em vigor em janeiro de 2003. Algumas organizações, como a APASE e a PaiLegal - Associações de Pais Separados -, ainda lutam por novas mudanças nesse código por meio de projetos, visando promover a continuidade do convívio da criança com ambos os pais, por entender que este convívio é indispensável para o desenvolvimento emocional da criança de forma saudável, tornando a guarda compartilhada a norma, e não a exceção, como vem sendo feito.
O projeto do Deputado Tilden apresentou várias propostas, como os parágrafos 1º e 2º acrescentados ao art. 1.583 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que instituiu o novo Código Civil:
"Art. 1583"
.......................................................................
§ 1º O juiz, antes de homologar a conciliação, sempre colocará em evidência para as partes as vantagens da guarda compartilhada.
§ 2º Guarda compartilhada é o sistema de corresponsabilização do dever familiar entre os pais, em caso de ruptura conjugal ou da convivência, em que os pais participam igualmente da guarda material.
Em sua fundamentação, esse Projeto de Lei define os tipos de guarda, conforme a seguinte descrição:
Guarda alternada - Caracteriza-se pela possibilidade de cada um dos pais deter a guarda do filho alternadamente, segundo um ritmo de tempo que pode ser um ano, um mês, uma semana, uma parte da semana, ou uma repartição organizada dia-a-dia e, consequentemente, durante esse período de tempo deter de forma exclusiva, a totalidade dos poderes-deveres que integram o poder parental. No término do período, os papéis invertem-se. É a atribuição da guarda física e legal, alternadamente a cada um dos pais. Este é um tipo de guarda que se contrapõe fortemente a continuidade do lar, que deve ser respeitada para preservar o bem-estar da criança. É inconveniente à consolidação dos hábitos, valores, padrões e formação da personalidade do menor, pois o elevado número de mudanças provoca uma enorme instabilidade emocional e psíquica. A jurisprudência a desabona, não sendo aceita em quase todas as legislações mundiais.
Guarda dividida - Apresenta-se quando o menor vive em um lar fixo, determinado, recebendo a visita periódica do pai ou da mãe que não tem a guarda. É o sistema de visitas, que tem efeito destrutivo sobre o relacionamento entre pais e filhos, uma vez que propicia o afastamento entre eles, lento e gradual, até desaparecer. Ocorrem seguidos desencontros e repetidas separações. São os próprios pais, que contestam e procuram novos meios de garantir uma maior e mais comprometida participação na vida de seus filhos.
Aninhamento ou nidação - É um tipo de guarda raro, no qual os pais se revezam mudando-se para a casa onde vivem as crianças em períodos alternados de tempo. Parece ser uma situação irreal, por isso pouco utilizada.
Guarda compartilhada ou conjunta - Refere-se a um tipo de guarda no qual os pais e mães dividem a responsabilidade legal sobre os filhos ao mesmo tempo e compartilham as obrigações pelas decisões importantes relativas à criança. É um conceito que deveria ser a regra de todas as guardas, respeitando-se evidentemente os casos especiais. Trata-se de um cuidado dos filhos concedidos aos pais comprometidos com respeito e igualdade. Nela, um dos pais pode deter a guarda material ou física do filho, ressalvando sempre o fato de dividirem os direitos e deveres emergentes do poder familiar. O pai ou a mãe que não tem a guarda física não se limita a supervisionar a educação dos filhos, mas sim participará efetivamente dela como detentor de poder e autoridade para decidir diretamente na educação, religião, cuidados com a saúde, lazer, estudos, enfim, na vida do filho. Ela permite que os filhos vivam e convivam em estreita relação com o pai e com a mãe, havendo a co-participação em igualdade de direitos e deveres. É uma aproximação da relação materna e paterna, visando o bem estar dos filhos. São benefícios grandiosos que a nova proposta traz às relações familiares, não sobrecarrega nenhum dos pais, e evita ansiedade, stress e desgastes. Entende-se que a guarda compartilhada surgiu do desequilíbrio dos direitos parentais e de uma cultura que desloca o centro de seu interesse sobre a criança em uma sociedade de tendência igualitária. A nítida preferência reconhecida à mãe para a guarda, já vinha sendo criticada como abusiva e contrária à igualdade. Logo, ela busca reorganizar as relações entre pais e filhos no interior da família desunida, diminuindo os traumas do distanciamento de um dos pais.
Agora, já em vigor, porém com propostas de mudanças, o novo Código Civil prevê, em relação à guarda de filhos, que são deveres de ambos os cônjuges o “sustento, guarda e educação dos filhos” (art. 1.566, IV).
O capítulo que trata da proteção da pessoa dos filhos dispõe que em “caso de dissolução da sociedade ou do vínculo conjugal pela separação judicial por mútuo consentimento ou pelo divórcio direto consensual, observar-se-á o que os cônjuges acordarem sobre a guarda dos filhos” (art. 1.583), e que “decretada a separação judicial ou o divórcio, sem que haja entre as partes acordo quanto à guarda dos filhos, será ela atribuída a quem revelar melhores condições para exercê-la” (art. 1.584). No seu parágrafo único dispõe que “verificando que os filhos não devem permanecer sob a guarda do pai ou da mãe, o juiz deferirá a sua guarda à pessoa que revele compatibilidade com a natureza da medida, de preferência levando em conta o grau de parentesco e relação de afinidade e afetividade, de acordo com o disposto na lei específica”. Continuando no art. 1.585 dispõe que “em sede de medida cautelar de separação de corpos, aplica-se quanto à guarda dos filhos as disposições do artigo antecedente” e, no art. 1.586, que “havendo motivos graves, poderá o juiz, em qualquer caso, a bem dos filhos, regular de maneira diferente da estabelecida nos artigos antecedentes a situação deles para com os pais.”
Apesar de o novo Código Civil não fazer diferenciação entre pai e mãe na preferência da guarda de filhos, o art. 1.586 confere amplos poderes ao juiz para decidir as questões relativas à guarda. São nesses casos que, com freqüência, o juiz solicita uma Perícia Psicológica.
Os artigos que tratam da guarda fazem parte do Direito de Família, o qual constitui, segundo Diniz, “o ramo do Direito Civil concernente às relações entre pessoas unidas pelo matrimônio ou pelo parentesco” (Diniz, 1988, p. 3). Estavam antes regulamentadas em alguns artigos do Código Civil, revogados pela Lei do Divórcio - Lei n.º 6.515/77. Esta última editou regras sobre a proteção à pessoa dos filhos, tendo sido atualizados/modificados alguns artigos pelo novo Código Civil.
A guarda é definida como o direito dos pais de terem em sua companhia os seus filhos menores. A guarda compartilhada, ou conjunta, conforme define Carcereri (2001), é a situação jurídica na qual ambos os pais têm direito à guarda e à responsabilidade do filho, alternando-as entre si periodicamente. No entanto, os conceitos dos tipos de guarda variam segundo cada jurista. Para Rabelo (1999), no caso da guarda compartilhada, os pais têm direitos e deveres oriundos do poder familiar: educação, religião, saúde, lazer etc.; no entanto, a guarda material ou física do filho cabe apenas a um dos cônjuges. Para Rabelo (1999), a alternância dos períodos de posse tal como a define Carcereri (2001) não existe. A alternância de acordo com a posse, para esta autora, é definida por meio de outro modelo de guarda: a alternada.
Ainda em relação às definições, encontramos em Nick (1996), ao citar o jurista americano Dr. Henry S. Gornbein, a diferença da guarda compartilhada sem e com alternância de casas, chamando a primeira de guarda jurídica e a segunda de guarda física: a guarda jurídica (joint legal custody) refere-se a tomar decisões em conjunto, morando a criança somente com um dos pais e a guarda física (joint physical custody ou residential joint custody) é um arranjo para que ambos os pais possam estar o maior tempo possível com seus filhos. Geralmente os pais moram perto um do outro, e os filhos passam, por exemplo, a metade da semana com um e a metade com o outro progenitor.
Nesta pesquisa, por guarda compartilhada entende-se a alternância de casas sem que se anule a guarda dos dois pais. O progenitor que não esteja com a posse nos momentos em que os filhos se ausentam para estar com o outro progenitor – conforme a alternância de casas acordada – mantém, juntamente com este último, a guarda.
Antes do novo Código Civil, as questões relativas à guarda estavam dispostas na Lei do Divórcio e, como já dito, sofreram algumas alterações. A Lei do Divórcio faculta aos cônjuges uma decisão amigável quanto à guarda dos filhos, conforme art. 9º: “No caso de dissolução da sociedade conjugal pela separação judicial consensual (art. 4º), observar-se-á o que os cônjuges acordarem sobre a guarda dos filhos”. Basicamente contém o mesmo teor do art. 1.583 do novo Código Civil.
Não havendo acordo entre os pais, a decisão judicial pode basear-se na aplicação dos artigos 10, 11 e 12, que rezam:
“Art. 10 – Na separação judicial fundada no caput do art. 5º, os filhos menores ficarão com o cônjuge que a ela não houver dado causa. Este artigo não mais faz parte do Código Civil.
Art. 11 - Quando a separação judicial ocorrer com fundamento no § 1º do art. 5º, os filhos ficarão em poder do cônjuge em cuja companhia estavam durante o tempo de ruptura da vida em comum.
Art. 12 - Na separação judicial fundada no § 2º do art. 5º, o juiz deferirá a entrega dos filhos ao cônjuge que estiver em condições de assumir, normalmente, a responsabilidade da sua guarda e educação.”. Este é análogo ao Art. 1.584 do novo Código.
Outra possibilidade é a de que o juiz decida a partir de outras provas, como uma perícia psicológica, ainda que em desacordo com os artigos citados, mas conforme autorização do art. 13: “Se houver motivos graves, poderá o juiz, em qualquer caso, a bem dos filhos, regular por maneira diferente da estabelecida nos artigos anteriores a situação deles com os pais.”, que é análogo ao art. 1.586 do novo Código.
Uma das inovações no novo Código Civil foi a retirada da vinculação da guarda com quem não deu causa à separação, conforme dispunha o Art. 10 acima citado. Quanto ao direito de visitas, este está resguardado pelo art. 15 da mesma Lei: “Os pais em cuja guarda não estejam os filhos poderão visitá-los e tê-los em sua companhia, segundo fixar o juiz, bem como fiscalizar sua manutenção e educação”. No entanto, de forma semelhante ao que estabelece o art. 13, o juiz pode negar a um dos pais o direito de visita.
Em relação ao direito de visitas, Nick (1996), ao comentar Wolchik (1985), alega que a visitação é comumente transformada em arena crítica para a redefinição de vínculos de poder e de intimidade entre os ex-cônjuges, e dos papéis parentais. Além disso, os pais argumentam que uma das causas freqüentes de baixa visitação é ligada a experiências penosas e estressantes que decorrem das dificuldades de contato com os filhos e com os ex-cônjuges. Essas dificuldades podem aumentar à medida que o tempo passa, e somente a visitação, em detrimento do convívio mais freqüente, faz com que o vínculo de intimidade enfraqueça, com que pais e filhos vão se desapegando.
Note-se que a Lei dá amplos poderes e liberdade ao juiz para que este defina a guarda dos filhos menores. A partir dessa prerrogativa, se comprovada a conveniência da guarda conjunta, o magistrado poderá estabelecê-la. Sobre esse poder conferido ao juiz, Pereira (apud Carcerari, 2001) magistrado no Rio Grande do Sul, tece o seguinte comentário:
Somente o exame profundo pelo Juiz, no tocante a determinado caso concreto, permitirá o decisório mais justo, porque baseado nas peculiaridades e facetas especialíssimas dos fatos sub judice e porque radicado em variados elementos probatórios, não faltando estudos sociais, familiares, econômicos, psiquiátricos e psicológicos, desenvolvidos por técnicos especializados que assessoram o julgador .
Ainda no mesmo sentido, discutindo a função do juiz, Moura (apud Carcerari, 2001) esclarece que:
A sua função transcende a formal aplicação das fórmulas abstratas, para, mais do que nunca, buscar, dentro do humanamente possível, a melhor decisão em termos de interesse do menor. É tema em que a felicidade do menor há de ter projeção na tela dos motivos que ditam as soluções.
A questão do melhor interesse da criança parece ser ponto pacífico entre juízes, advogados, assistentes sociais e pais. Porém, associadas ao tema, cabem as seguintes perguntas: quem vai definir o “melhor para a criança”? Como saber qual o melhor interesse? A partir de quais critérios?
No campo jurídico, é possível conhecer o interesse consciente, que poderá estar influenciado, sobretudo em casos de litígio, pela vontade dos pais muitas vezes impregnada no discurso dos filhos. Sem dúvida deve-se priorizar o “melhor interesse da criança”, mas para isso é necessário deixá-las falar sobre o desejo, mostrar o que é latente (em Psicanálise, latente é o que está inconsciente, a verdade do sujeito). É aí que entra em cena o conhecimento psicológico, pois a oitiva de crianças só se fará importante quando feita de forma indireta, por meio do lúdico, por profissionais qualificados. A oitiva de crianças, de forma direta, pelo judiciário, poderá levar ao equívoco, e consequentemente causar danos às crianças, que terão que decidir questões de adultos e escolher ficar com um progenitor em detrimento do outro. Esta vontade da criança poderá estar relacionada com a vontade do progenitor mais coercitivo.
Entendo que, do ponto de vista psicológico, “o melhor interesse da criança” não pode ser revelado somente mediante comportamentos manifestos – aqueles possíveis de se observar no dia-a-dia – mas principalmente pelos desejos inconscientes, menos influenciados pelos pais, que, em meio ao litígio, não conseguem perceber que poderão prejudicar seus filhos.
Conforme se pode deduzir a partir de trechos de Acórdão s emitidos pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, citados por Rosa (2002), tenta-se sempre amparar o “melhor interesse da criança”, porém de forma equivocada. As decisões judiciais, se não investigam de fato o real interesse da criança, deixam muitas vezes de alcançar esse objetivo. Os seguintes trechos de acórdãos de jurisprudência são exemplos do que se afirma aqui :
“Há o interesse manifesto em continuar com o pai e com a avó, por quem é bem tratado, bem vestido, e o dirigem à escola” (Rovani; Ver. TJRGS n 150:512, in ROSA 2002);
“O terceiro aspecto, e o mais importante de todos para o deslinde do feito, é a vontade inequívoca esposada pela menina, de retornar ao lar materno. (...) Em razão da idade de A deve ser levado em conta sua vontade, eis que diretamente relacionada com os interesses do menor.”(Torres; Ver. TJRGS n 167:398, in ROSA 2002);
“A vontade do menor assume vital importância, sendo que de nada adiantaria deferir-se a guarda ao pai, se pretende com sua mãe morar.” (Bortolotto; Ver. TJRGS n 167:398, in ROSA 2002);
“...nada impede que sejam inquiridas informantes as menores, nenhum prejuízo maior lhes advindo dessa providência, pelo contrário, acauteladora de seus interesses e sobre os quais gera a controvérsia jurídica.” (Barcellos; Ver. TJRGS n 85:254, in ROSA 2002).
O novo Código Civil em vigor não trouxe grandes mudanças, como era esperado, seguindo-se ainda no Poder Judiciário as jurisprudências dominantes que determinam a guarda exclusiva de um dos pais e visitas pelo outro. O debate acerca das questões ventiladas pela guarda compartilhada é ainda discreto, mas aos poucos tem angariado novos simpatizantes e a atenção de estudiosos. Um exemplo é o do advogado e professor Waldyr Grisard Filho, que fez sua dissertação de mestrado sobre o tema. Escreve ele:
Embora não haja norma expressa nem tampouco usual na prática forense, a guarda compartilhada se mostra lícita e possível no nosso Direito, como o único meio de assegurar uma estrita igualdade entre os genitores na condução dos filhos, aumentando a disponibilidade do relacionamento destes últimos com o pai ou a mãe que deixa de morar com a família. Opõe-se, com vantagens, à guarda uniparental, que frustra a adequada convivência do filho com o pai ou a mãe não-guardião, desatendendo as necessidades do menor, que não dispensa a presença, permanente, conjunta, ininterrupta, de ambos os genitores em sua formação para a vida. A função paternal, nas diversas fases do desenvolvimento dos filhos, não é descartável.(Grisard, 2000, p. 140).
Importante ressaltar que, quando da referida Dissertação, o novo Código Civil não estava em vigor. Isso porque, mesmo antes de sua aprovação, a Legislação já se mostrava favorável à prática da guarda compartilhada. A Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, chamada de Estatuto da Criança e do Adolescente – E.C.A., já dispunha “sobre a proteção integral à criança e ao adolescente”, indicando que é
dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, e à convivência familiar e comunitária. (Brasil, 1990).
Justifica-se o destaque aqui efetuado da questão da convivência familiar pelo entendimento de que este dispositivo de certa forma fundamenta o conceito de guarda compartilhada, juntamente com o artigo 5º da Constituição Federal ao dispor que “todos são iguais perante a Lei, sem distinção de qualquer natureza”, pois não se pode preterir um progenitor em função do outro. Também o Código Civil anterior, no seu art. 384, já anunciava a competência dos pais quanto à pessoa dos filhos menores, principalmente o seu inciso II “tê-los em sua companhia e guarda”.
Assim sendo, pode-se compartilhar do entendimento de Nick (1996) ao assinalar que, levando em conta o E.C.A., o pátrio poder e a Constituição Federal, é possível concluir que a doutrina brasileira é favorável à guarda compartilhada – mesmo antes do novo Código Civil -, ao menos no que tange às responsabilidades e ao cuidado para com os filhos.
No âmbito dos consultórios de Psicologia, verifica-se que a guarda compartilhada com alternância de casas é uma prática que existe mas que, na grande maioria dos casos, não passa pelos tribunais. Tratam-se de acordos entre os próprios pais que não querem abrir mão da convivência com seus filhos. Parece importante que, ao determinar a guarda de filhos, o Poder Judiciário leve em conta alguns aspectos como os vínculos entre pais e filhos e as questões latentes das crianças para que realmente atenda-se ao seu “melhor interesse”.
2.3. Questões de Gênero: masculinidade/feminilidade; maternidade/paternidade
“As duas garotinhas, de 6 para 7 anos, brincavam de casinha no quintal. Minha amiga, que é a mãe de uma delas, viu seu filho de 5 anos aproximar-se e pressentindo a possibilidade de confusão, passou a prestar mais atenção aos acontecimentos. O menino pediu, várias vezes, para brincar também, mas seu pedido foi sistematicamente negado. Quando ele já estava a ponto de chorar, a irmã olhou em direção à mãe e disse: - Tá bom, pode brincar, tá ...
Imediatamente, a amiguinha resmungou indignada, mas a garota cochichou-lhe algo. Ambas sorriram e a irmã prosseguiu: - Você é o pai. Pega a mala e vai trabalhar.
Minha amiga ainda não havia se refeito do assombro frente ao discurso da filha quando ouviu o menino afirmando enfaticamente: - Assim eu não quero. Eu sou um pai moderno. Eu não quero só trabalhar.” (Souza, 1994, p. 3).
Esta citação em epígrafe vem ilustrar a chamada “nova paternidade”, segundo a qual pais, de forma cada vez mais expressiva, vêm querendo ocupar um outro lugar junto aos filhos, que não apenas o de provedor. Esta “nova paternidade” vem abrir espaço para se questionar o estereótipo da paternidade. “Estes novos pais são jovens, participam da gravidez e do parto das esposas, alimentam, mudam as fraldas, dão banho em seus bebês com toda a ternura necessária” (Badinter, 1986, p. 227). Ainda segundo Badinter (id.), maternagem não é mais assunto exclusivo das mulheres e as diferenças entre maternidade e paternidade são mais individuais que sexuais.
Estudar a “nova paternidade” remete às questões de gênero, que proporcionam de forma muito clara uma interpretação dos fenômenos sociais. Essas questões se fazem importantes à medida que informam sobre as relações de poder perpetuadas ao longo da história pelas diferenças sexuais, que ditam os papéis de homens e mulheres, pais e mães, para cada sociedade. Assim, é necessário discutir a naturalização que se faz das questões das diferenças sexuais, como se os papéis de cada sexo fossem pré-determinados biologicamente.
Com o auxílio de alguns autores, os conceitos das teorias de gênero favorecem o entendimento das relações de poder determinadas pelo sexo, a construção da feminilidade e da masculinidade e, por fim, a construção da maternidade e paternidade. É consenso no campo dos estudos de gênero, que as relações entre homens e mulheres são permeadas pelo poder, marcado pelas diferenças sexuais, conforme afirmaram Saffioti (1994, p. 280): “Gênero é sim um eixo a partir do qual o poder é articulado” e Scott (1990, p. 14): “... gênero é um primeiro modo de dar significado as relações de poder”.
As relações sociais, quer no âmbito público, quer no âmbito privado, delimitam papéis de dominados e dominadores, tal qual foi o das mulheres, dominadas, por muito tempo submetidas à autoridade dos homens, dominadores. Foi necessário que elas, num movimento próprio, saíssem do lugar da submissão, no qual muitas ainda se encontram, lutando por igualdade de direitos.
Isso não quer dizer que é possível viver em sociedade sem os exercícios de poder. Tampouco há só os eternos dominadores e dominados, sempre num mesmo pólo. Eles circulam pelos dois papéis, dominado/dominador. No entanto, como afirma Saffioti, “nas sociedades ocidentais espera-se que as crianças se submetam à autoridade adulta e que as mulheres se submetam à autoridade do homem” (Saffioti, 1898, p. 50) e “O homem domina a mulher que, por sua vez, domina a criança no dia-a-dia” (id., p. 51).
Em algumas organizações familiares estes lugares de dominadores e dominados já estão mais diluídos, circulando mais entre os seus membros. As razões são as mais diversas, marcadas pelas mudanças no campo econômico, político e social, bem como pela própria iniciativa dos membros do grupo familiar.
Uma forte razão dessas mudanças foi o movimento feminista que, ao defender a igualdade de direitos, contribui para destacar a forma de organização familiar em que há divisão de afetos e da manutenção financeira da família, independente do sexo. A partir destes movimentos, acentua-se a inserção da mulher no âmbito público, econômico e político, mudando aquele papel determinado e naturalizado historicamente de dona de casa, inserida somente no âmbito privado, em última instância, no cuidado da casa e dos filhos.
As mudanças intrínsecas ao novo panorama social verificadas em algumas parcelas da sociedade, demarcam uma nova forma de organização social, trazendo novos conceitos como o do “pai moderno”. Esse homens que “perderam” espaço no mundo público, dividindo-o com as mulheres - uma divisão não muito igualitária, é certo - agora penetram mais no mundo privado, querendo compartilhá-lo com as mulheres – novamente, uma divisão não muito igualitária.
Na concepção de Souza (1994), este novo pai nasce quando começa a ser questionado o papel de provedor, em conseqüência da dupla carreira ou dupla renda (mulheres no mercado de trabalho). Segundo a autora, “em oposição ao pai tradicional, cujo papel era de provedor e cuja função a de autoridade familiar, o ‘novo pai’ ou o ‘pai moderno’, segundo Lamb (1986), é exatamente aquele homem ‘profundamente envolvido com a vida diária da família e com a criação dos filhos’” (Souza, 1994, p. 5).
A partir do momento em que alguns pais conseguem manifestar sua afetividade no contato com os filhos, a proximidade entre eles aumenta, mudando assim as relações familiares. “Ser pai traz à tona uma gama de emoções que, para muitos, ainda é coisa de mulher. Ser pai convoca à afetividade, coisa difícil de o homem lidar” (Cesar, 1988, p. 1). No entanto, para esses novos pais, as questões afetivas, de intimidade, bem como os filhos, não são mais coisas só de mulheres, mas fazem parte do seu cotidiano também, já pontuadas por Gonçalves (2002, p. 49): “Apesar de a manifestação da emotividade ser um aspecto ainda pouco discutido, isso tem se modificado em relação à paternidade, na qual os padrões de masculinidade têm se tornado menos rígidos, propiciando a busca de novas práticas e pautas relacionais com os filhos” .
Esse processo de mudança para uma nova paternidade torna-se visível quando se compara as famílias de origem com as dos pais, como fez Carvalho (1990), na sua dissertação de mestrado. A autora entrevistou pais de cinco famílias de camadas médias da cidade de São Paulo, com idades entre 31 e 39 anos, traçando um paralelo dos pais da família de origem com os das famílias dos entrevistados, a partir das suas falas. Percebe-se, na forma de organização familiar, que os papéis de pai e mãe já não são tão definidos na família nuclear, em contraste com a de origem, em que o homem é responsável pelo sustento e, a mulher, por cuidar dos filhos. Esses homens/pais não tinham uma relação direta com o filho, mas sim intermediada pela mãe. Os pais entrevistados apontam a falta de diálogo com os seus pais e a distância que existia entre eles. Falam que a relação deles (família nuclear) com os filhos é diferente da relação que mantinham com os seus pais (família de origem). Há mais diálogo e proximidade com os filhos. A autora detectou um lento processo de transformação na família nuclear em relação à de origem (id., p. 133, 134, 137 e 138).
Essa mudança lenta na forma de organização familiar para uma nova paternidade ocorreu e ocorre simultaneamente às mudanças das mulheres, às suas reivindicações desde os primeiros movimentos feministas. As mulheres mudaram após muitas lutas e conquistas - que não terminaram -, desprendendo-se daquele lugar “natural” de mãe e dona de casa, vislumbrando outras possibilidades, lutando pela igualdade de direitos. Mas se as mulheres mudaram, consequentemente, a sociedade mudou, a forma de organização familiar mudou, o homem mudou, já que se acredita que é na relação que os sujeitos se constituem. Assim, “A libertação da mulher do jugo do homem corresponde também à liberação do homem do jugo deste modelo ideal que o tem aprisionado” (Siqueira, 1999, p. 193).
Tem-se claro que a concepção da função de paternidade e de maternidade vai se dar de forma singular para cada sociedade, e dentro de determinado contexto histórico serão definidos os limites dos papéis materno e paterno. Por exemplo, hoje, com alguns avanços da medicina – entre eles a invenção da pílula anticoncepcional – ser mãe passa a ser uma opção para a maioria das mulheres, um projeto de vida ou não, numa mesma sociedade que antes não vislumbrava tal perspectiva.
Da mesma forma, aqueles papéis rígidos que colocavam a mulher no mundo privado e, o homem, no público, como algo inerente à sua natureza sexual, “...uma certa tendência à naturalização de papéis femininos e masculinos, que ligava os homens à cultura e ao mundo público, e as mulheres ao mundo privado, doméstico, e à natureza, em função de suas atribuições na reprodução biológica da família e na educação dos filhos” (Lago, 1999, p. 4), aos poucos vão sendo questionados, e, como conseqüência, as formas de organizações sociais mudam.
Parece existir uma analogia entre a forma de se constituir masculino/feminino e paternidade/maternidade, havendo relação entre eles, como em qualquer fenômeno social. Assim como feminilidade e masculinidade passam a ser consideradas como não contingentes ao sexo mas ditadas pela cultura, as identidades de gênero se constróem de forma relacional, ou seja, pelo contraste permanente com o outro (Grossi, Heilborn & Rial, 1998). Da mesma forma, estabelecem-se maternidade e paternidade, visto que são conceitos relacionais, e é na relação com o outro que se significam. Segundo Scott, “...informações sobre o assunto mulher é necessariamente informação sobre os homens, que um implica o estudo do outro” (Scott, 1990, p. 7). A constituição do sujeito é relacional, e como afirma Kehl, por não haver diferenciação sexual no inconsciente – por não haver representação para a falta -, é na cultura que a constituição se dá, “No inconsciente esta mínima diferença é indefinida. Ninguém nasce homem ou mulher; tornamo-nos homens ou mulheres” (Kehl, 1996, p. 13), ou pais e mães...
Masculinidade e feminilidade são metáforas, um só existe em contraste com o outro (Gonçalves, 2002), assim como os papéis materno e paterno. Estes últimos, trazendo as primeiras na sua constituição, carregam funções herdadas historicamente, dentro de determinado contexto social, como se naturalmente associadas ao sexo biológico: maternidade, feminilidade e cuidados com os filhos pertencentes à mulher; paternidade, masculinidade e provedor familiar como próprias do homem. No entanto, estudos apontam e mostram que, na prática, esta separação radical não existe, pois “ao nível da sociedade não existem fenômenos naturais” (Saffiotti, 1994, p. 271). O que é masculino e feminino misturam-se em ambos os sexos, tal qual deveriam ser as funções de cuidar (maternagem, afetividade: feminilidade) e de prover (masculinidade) os filhos. Elas são descoladas do sexo. Os vínculos estabelecidos por pais e filhos, tão priorizados no processo de guarda, independem do sexo “... a diferença sexual não influencia na construção de vínculos, e sim a interação singular entre a criança e o adulto (brincadeiras, lazer e cuidados)” (Lamb & Pleck, 1997, in Gonçalves, 2002) .
Saffioti (1994) afirma a dificuldade em se falar de uma diferença, já que não há uma essência feminina e uma masculina. Tanto o homem como a mulher podem ocupar posições diversas, pois não há limites que sejam intransponíveis e que determinem o que é de um ou de outro, o que pode ser estendido à maternidade e à paternidade, como cuidadores e provedores. A autora cita um exemplo desta circulação do masculino e do feminino no homem e na mulher, quando fala da violência doméstica como associada ao gênero masculino, mas podendo ser exercida tanto por homens quanto por mulheres.
Gonçalves (2002) cita estudos como o de Lamb e Pleck (1997) e de Hetherington e Stanley-Hugan (1997), que vêm mostrar que se “os pais/homens respondem adequadamente às necessidades dos filhos, desenvolvem, assim, vínculos nos quais as crianças se sentem protegidas, e em situações estressantes também recorrem àqueles tanto quanto as suas mães” (Gonçalves, 2002, p. 55). É por isso que, nos processos de guarda de filhos leva-se muito em conta, entre outros, os vínculos dos filhos com os pais, para se estabelecer a guarda. São esses pais que representam a nova paternidade que vêm obtendo êxito nesses processos, o que, inclusive, impulsionou o poder judiciário a rever suas leis, e trazer no novo Código (2003), o direito de igualdade entre mãe e pai na guarda dos filhos.
Nessa linha de pensamento, é importante mencionar as considerações de Souza (1994), em sua tese de doutorado, na qual pesquisou quinze homens que desempenham o papel de cuidador principal dos filhos, há pelo menos um ano. Conclui a autora:
Não há impedimentos possíveis ao envolvimento masculino com a função de cuidador. Independentemente da idade e sexo dos filhos, da idade e condições financeiras dos pais, de terem ou não sido pais ativos durante o casamento, da guarda ter ou não sido imediata, estes homens foram capazes de desenvolver as habilidades necessárias para cuidar eficientemente de seus filhos. (Souza, 1994, p. 194)
Além disso, a autora (id.) afirma que a guarda masculina é uma possibilidade tanto quanto a feminina, achando necessária a revisão da lógica usada nas decisões judiciais. Ressalta, também, que a guarda exclusiva não exclui o genitor que não a detém, pois as crianças permanecerão precisando de pai e mãe, do enriquecimento que a relação com os dois cuidadores pode proporcionar, quer eles morem juntos ou não. Por fim conclui:
Os pais mais jovens e os mais velhos, os mais e menos engajados no cuidado dos filhos durante o casamento, todos puderam desenvolver a capacidade de cuidar, mesmo de crianças bastante pequenas, não porque a presença contínua dos filhos tornou-os confusos o suficiente para que se transformassem mas, porque a força do vínculo afetivo com eles permitiu-lhes enfrentar a confusão interna, acreditando que o desafio valeria à pena. (Souza, 1994, p. 201/2).
A pesquisa de Souza mostra que não há nada de natural, de pré-estabelecido nos fenômenos sociais e enriquece o que é discutido e afirmado nas teorias de gênero: que ser pai e ser mãe são resultantes do aprendizado social e, como tal, trazem os limites de cada sociedade, constituindo-se nela, descolados do sexo biológico considerado como natural. Para a psicanálise, ser pai é dar nome ao filho, sustentado pelo discurso da mãe – objeto do desejo da mãe.
2.4 Questões Psicológicas
A Psicologia, de forma lenta, vai ganhando espaço junto ao âmbito judiciário, como forma de auxiliar o juiz na decisão de processos que envolvam questões psicológicas. Nas Varas de Família, os psicólogos são chamados, com freqüência, para fazer uma avaliação psicológica, a fim de contemplar dados além dos comportamentos manifestos das crianças. São processos em que, geralmente, os pais disputam a guarda do filho. Nestes casos, cabe ao Psicólogo constatar a dinâmica da criança, desde os comportamentos manifestos até os significados latentes.
A guarda deveria ser estabelecida de acordo com o modelo singular de cada família se organizar. Essas formas de organização familiar não são fixas e acontecimentos como a separação podem mudar o lugar ocupado por cada progenitor. Pais ausentes podem tornar-se presentes, conquistando a confiança do(s) filho(s), imprimindo outro significado à relação. Com isso, uma guarda exclusiva poderá transformar-se em compartilhada e vice-versa, visto que essas decisões não transitam em julgado, podendo ser revistas a qualquer momento. Nesses termos, cabe ao psicólogo durante a perícia constatar de fato as relações e vínculos estabelecidos entre pais e filhos , para apreciar a singularidade de cada caso como argumentou Dolto (1989, p. 45).
Torna-se fundamental, durante a perícia, verificar o comprometimento de cada progenitor com seu filho: do fator econômico ao emocional. Perguntas como: quem leva e pega a criança na escola, no médico, no dentista, ajuda nas tarefas de casa, brinca, dá banho, comida, vai à reunião na escola etc, enfim, comportamentos manifestos ajudarão a entender a participação dos pais na vida dos filhos. Por outro lado, são os procedimentos clínicos que poderão informar sobre os desejos dos envolvidos – significados latentes – imprescindíveis num parecer psicológico.
Para sustentar esse entendimento, lança-se aqui mão de alguns autores que o fundamentam. Busca-se definições claras em diferentes campos teóricos, como a Psicanálise Kleiniana e a Psicanálise Freudiana/Lacaniana, tendo sempre o cuidado de não justificar um conceito no outro, sem contudo, embora seja um percurso difícil, abrir mão desses conhecimentos, pois seria deixar de somar contribuições ímpares.
Faz-se necessário, neste momento, marcar as diferenças dessas teorias psicanalíticas, a fim de não se surpreender, durante a construção do texto, com ambivalências que possam levar a não diferenciá-las.
As controvérsias maiores entre as obras kleiniana e a freudiana encontram-se no entendimento da precocidade dos processos psíquicos considerados por Klein. Para esta autora, o ego, fantasias inconscientes, relações de objeto e mecanismos de defesas estão presentes desde o nascimento, atribuindo-lhes assim um caráter mais biológico. Para Freud e Lacan, esses processos são divorciados do âmbito biológico e constituídos nas relações. Klein também descreve o surgimento do superego e do complexo de Édipo precocemente, durante o primeiro ano de vida e é a precursora da teoria das relações de objeto.
Em Nasio (1995) pode-se fazer a leitura de que a diferença da obra kleiniana para a freudiana está na precocidade que Klein atribui ao supereu, ao conflito edipiano, bem como ao papel central da mãe em sua teoria. O Édipo em Freud ocorre por volta dos 4/5 anos, seguido pelo supereu que é o seu herdeiro. Em Klein, o supereu antecede o Édipo e este acontece durante o primeiro ano de vida. A tríade edipiana, que em Freud se estabelece entre mãe/filho/falo (marcadas pela falta), em Klein se dará na tríade mãe/filho/objeto (marcadas pela presença/ausência – relação objetal). A mãe kleiniana - a boa mãe -, não é castrada como a mãe freudiana, mas sim, repleta de objetos, marcada pela presença e ausência e não pela falta.
Em Klein, as fantasias inconscientes existem desde o início, como um ego rudimentar e um sistema de defesa que precede a repressão. Há em Klein um determinismo biológico, marcado pela primazia dos instintos, em quanto em Freud, não existe este determinismo, e a primazia é da pulsão. Para este autor, as fantasias inconscientes somente podem existir após a repressão ter se estabelecido como o principal mecanismo de defesa no aparelho psíquico da criança.
Enquanto Klein fala das relações de objetos primitivas, desde o nascimento – ama, odeia, deseja, ataca (...) -, Freud localiza nos primeiros meses um narcisismo primário que precede as relações de objeto. É a partir do narcisismo secundário em Freud e do estádio de espelho em Lacan, que se dariam as relações objetais
Neste texto, utilizo os conceitos kleinianos e freudianos para falar de um mesmo tema, ciente, no entanto, das diferenças teóricas que os sustentam, acima brevemente marcadas. Utilizo alguns conceitos dessas teorias, à medida que as interrogações vão encontrando justificativas nelas e permitem entender as possibilidades da criança, como a de se separar da mãe (cuidador) – localização cronológica do tempo – uma vez que, em processos judiciais, esta questão se faz presente: pode uma criança de um ano alternar casas sem que isso lhe traga danos psíquicos? É em Melanie Klein, na sua teoria das posições e relações de objeto, que se pode entender essa dinâmica.
Outrossim, é indispensável o conceito de inconsciente e uma “escuta analítica”, para poder “decifrar” os conteúdos latentes, alcançando assim derivados do desejo – conceito freudiano – dos envolvidos. Essa escuta analítica, essencial na prática da psicanálise, vai se constituindo no decorrer da formação analítica, conforme propôs Lacan: análise pessoal, análise de controle e estudos clínicos, ou seja, articular a prática e a teoria, fazendo a clínica. É nesses moldes que o entendimento aqui proposto vem se construindo.
Nessa linha, faz-se necessário também buscar apoio nas idéias e na experiência da psicanalista francesa Françoise Dolto que propõe conceitos singulares, não abordados anteriormente, como o de tempo cronológico da criança e sua diferença com o do adulto, essencial para se pensar a alternância de casas e intervalos de visitas. Ademais, Dolto consolidou uma grande experiência com perícias, o que auxilia sobremaneira pensar a questão da presente pesquisa.
Começando por abordar a criança no seu primeiro ano de vida, é mister tentar teorizar em torno das perguntas tantas vezes lançadas: Com que idade a criança pode afastar-se da mãe (cuidador), criar novos vínculos, pernoitar em outra casa etc?
A partir da teoria kleiniana, pode-se concluir que a criança já a partir dos seis meses de idade começa a desenvolver condições internas para lidar com mudanças e se adaptar à realidade do mundo em que vive, pois começa a diferenciar as pessoas e objetos. É primordial para o bom desenvolvimento de uma criança que ela tenha outras referências, além da extensão do lar, o que pode e deve começar a acontecer a partir dos seis meses de idade, ganhando mais força com a passagem do tempo. Segundo Klein (1969), a criança de um ano de idade já pode e deve afastar-se do lar, ter outras relações, freqüentar jardins de infância, criar outros vínculos. Já possui condições internas para isto.
Ainda segundo Klein (1975), até em torno dos três ou quatro meses, a criança vive a posição esquizo-paranóide, em que, devido à constante divisão dos objetos bons e maus, tem dificuldades para formar novos vínculos. Assim relata a psicanalista: “Ao meu ver, os impulsos destrutivos onipotentes, a ansiedade persecutória e a divisão predominam nos três a quatro primeiros meses de vida. Descrevi esta combinação de mecanismos e ansiedades como a posição esquizo-paranóide” (Klein, 1975, p. 12-13). Para a autora, nessa posiçao, a relação objetal da criança é parcial, pois ela divide os objetos em bons e maus. O seio bom que a alimenta – a mãe boa - e o seio mau que a priva – a mãe má.
Em seguida, a criança entra no que chamou Klein (1975) de posição depressiva, na qual vai reconhecendo outras pessoas e relacionando-se, formando os primeiros vínculos. Nessa ocasião, ela começa a ver as pessoas na íntegra – relação total de objeto; na fase anterior, divide-as em partes – relações parciais de objeto. É possível e importante afastar-se do seu cuidador, e depois voltar a ele, pois é assim que a criança consegue saber internamente que as situações boas e ruins desaparecem e voltam: pernoitar em outra casa, ficar todo o dia numa escolinha etc. Em suas palavras,
A ansiedade que agora experimenta é de natureza predominantemente depressiva; e as emoções que a acompanham, bem como as defesas desenvolvidas contra elas, eu reconheço-as como parte do desenvolvimento normal, e denominei-as de “posição depressiva. (Klein, 1975, p. 15)
A leitura que se faz aqui da teoria kleiniana é a de que, passado o primeiro semestre, a criança já pode e deve manter uma relação com o mundo externo, seu ego que era rudimentar vai ganhando força para lidar com o que é novo, desenvolvendo mecanismos de defesa. Afirma Klein,
No desenvolvimento normal, com a crescente integração do ego, os processos de divisão diminuem e a capacidade aumentada de compreender a realidade externa e, até certa medida, de conciliar os impulsos contraditórios da criancinha, conduzem também a uma síntese maior dos aspectos bons e maus do objeto. Isto significa que as pessoas podem ser amadas apesar de suas limitações e que o mundo não é visto apenas em termos de preto e branco. (Klein, 1975, p. 15)
E ainda:
Durante o segundo trimestre do primeiro ano, certas mudanças no desenvolvimento intelectual e emocional do bebê se acentuam. A sua relação com o mundo externo, tanto pessoas como coisas, ganha maior diferenciação. Alarga-se o âmbito de suas gratificações e interesses, e aumenta o poder de expressar suas emoções e comunicar com as pessoas. Essas mudanças observáveis são uma prova do gradual desenvolvimento do ego. Integração, consciência, capacidades intelectuais, a relação com o mundo externo e outras funções do ego desempenham-se com firmeza. (Klein, 1969, p. 229)
Corroborando esse entendimento do psiquismo infantil, a psicanalista argentina Arminda Aberastury afirma que “já na segunda metade do primeiro ano, a criança necessita explorar o mundo e, além disto, distanciar-se da mãe” (Aberastury, 1982, p. 274). Este distanciamento é essencial para que a criança possa experimentar o estranho, desenvolver os seus mecanismos de defesa e enfrentar os conflitos inerentes ao desenvolvimento. Este processo é marcado por idas e vindas, afastar-se para poder voltar e ver que não perdeu o objeto amado, pois a separação precoce e definitiva pode levar ao desapego.
A teoria Kleiniana ajuda a pensar na possibilidade e nas conseqüências de as crianças alternarem as casas do pai e da mãe, tendo dois lares, ao invés de um e visitas ao outro progenitor. Parte-se da condição de que, para que isso aconteça, a criança teve vínculos muito positivos com ambos os pais, e que eles dividiam os cuidados e afetos com seus filhos. Pois, só assim, haverá a constância de objeto necessária nas idades precoces (ambos os pais seriam bons objetos), sendo a alternância somente de casa. Nesse movimento de idas e vindas entre uma casa e outra, o reencontro com cada cuidador, lhe daria a segurança da mantença dos objetos.
Por outro lado, alguns psicólogos, assistentes sociais e juizes sustentam que alternar casa trará problemas psicológicos para as crianças, porquanto estas necessitam de um único referencial de lar. Assim, é preciso estar atento, nesta pesquisa, para avaliar essa afirmação, já que a teoria parece não sustentá-la.
Faz-se necessário, neste momento, inserir tópicos abordados por Freud e por Lacan, que descrevem situações análogas à descrita por Klein, alertando sempre para o fato de que esses autores, embora tratem dos mesmos fenômenos, os sustentam diferentemente. O que em Klein ocorre a partir de seis meses, em Freud e Lacan se dá a partir de um ano de idade.
Segundo Freud (1976, vol. XVIII), o movimento da criança para além do lar e em direção ao mundo exterior vai propiciar ao ego desenvolver meios adequados para fazer frente e modificar as ansiedades atinentes àquele processo. Freud fala do brinquedo como elaborador dos conflitos e que a criança pequena tem condições e precisa lidar com as situações novas, que podem ou não trazer ansiedades. Menciona o brinquedo de um menino de um ano e meio que, para se distanciar da mãe (cuidador), elaborava a situação brincando com um carretel:
o menino tinha um carretel de madeira com um pedaço de cordão amarrado em volta dele (...). O que fazia era segurar o carretel pelo cordão e com muita perícia arremessá-lo por sobre a borda de sua caminha (...). Puxava então o carretel para fora da cama novamente, por meio do cordão, e saudava o seu reaparecimento com um alegre “da” (ali). (Freud, 1976, vol. XVIII, p. 26)
Chamou este jogo de “fort - da”, que funciona em alemão como exortações imperativas como os nossos: “Fora!” ou “Para lá!” e “Aqui!” ou “Volta!”. Freud considera que, a partir desta idade, em torno de um ano, as crianças conseguem entender que as pessoas vão e voltam; que os pais saem para trabalhar e depois retornam; que elas vão à escola e depois voltam para casa etc. São movimentos da criança para manter simbolicamente o cuidador presente. Tratam-se de situações essenciais para o bom desenvolvimento das crianças. Por meio dos brinquedos, elas conseguem elaborar o que é excessivo para o seu ego, fortalecendo-o. Afirma Freud: “(...) é claro que em suas brincadeiras as crianças repetem tudo o que lhes causou uma grande impressão na vida real e, assim procedendo, ab-reagem à intensidade da repressão, tornando-se, por assim dizer, senhores da situação” (Freud, 1976, Vol. XVIII, p. 28).
Lacan (1988), por sua vez, na sua teoria sobre o estádio do espelho, descreve situação análoga às descritas anteriormente. Nasio (1995, p. 166), afirma que Lacan comparou o estádio do espelho à posição depressiva, os objetos internalizados aos significantes e ainda deu ao objeto mau sua função de causa do desejo.
No estádio do espelho (Lacan, 1988) estrutura-se o “eu”, a criança se vê, então, separada da mãe. Ela passa do narcisismo primário ao secundário . As pulsões, que no narcisismo primário eram investidas no próprio corpo, passarão a ser investidas em objeto externo. É só nesse momento, em Freud e Lacan, que se dariam as relações de objetos, que em Klein acontecem desde o início.
Podemos pensar também, a partir de Freud (1976, Vol. XIV), que é neste momento, na passagem do narcisismo primário para o secundário, que começa a diferenciação do ID, formando-se o EGO. Em suas palavras, “uma unidade comparável no ego não pode existir no indivíduo desde o começo; o ego tem de ser desenvolvido. As pulsões auto-eróticas, contudo, ali se encontram desde o início” (Freud, 1976, Vol. XIV, p. 93).
Outra questão para a qual pode-se encontrar alguns esclarecimentos nas teorias kleiniana e freudiana, guardadas as diferenças fundamentais que as sustentam, é: não se deveria privar as crianças, principalmente as muito pequenas, de algumas situações estressantes, como a separação dos pais e a alternância de casas?
Klein entende que não se pode impedir as frustrações da criança, que são inevitáveis e as ajudam a enfrentar os seus sentimentos, “porquanto a própria experiência de que a frustração pode ser superada pode fortalecer o ego e faz parte da atividade do pesar que serve de apoio à criança em seu esforço para eliminar a depressão” (Klein, 1969, p. 288). É importante que a criança entre em contato com a ansiedade de separação, para finalmente poder amadurecer e tornar-se um adulto saudável.
Freud, na mesma linha, afirma que “a ansiedade descreve um estado particular de esperar o perigo ou preparar-se para ele, ainda que possa ser desconhecido” (Freud, 1976, Vol. XVIII, p. 23), e continua dizendo que “não acredito que a ansiedade possa produzir neurose traumática; existe nela algo que protege o seu sujeito contra o susto e, assim, contra as neuroses de susto” (id., p. 24). O conflito é inerente ao ser humano, e é assim também nas crianças, com o chamado “trauma do nascimento”, que precisa ser experimentado.
Nos primeiros meses de vida de uma criança, um adulto suprirá suas necessidades, pois o seu ego ainda é frágil para dar conta de semelhante tarefa. Com o passar dos meses, seu ego rudimentar vai se estruturando, permitindo à criança entrar em contato com os seus conflitos para que o seu ego vá se fortalecendo, para que ela possa se defender. O conflito é evolutivo e enfrentá-lo é essencial à adaptação.
O ego é a parte organizada do psiquismo, é o que possibilita as relações com o mundo externo, sendo o pólo defensivo da personalidade. Segundo Klein (1975, p. 6), o ego opera desde o nascimento (diferentemente de Freud e Lacan) e “tem importante tarefa de defender-se contra a ansiedade” (id.). Para Klein (1969), o ego é também mediador entre os acontecimentos internos e externos.
Inúbia Duarte, psicóloga e psicoterapeuta infantil, assinala a importância do fato de poder a criança enfrentar as diversas situações da vida para se adaptar ao mundo externo. Em suas palavras, “não podemos, no entanto, ajudar a prevenir atitudes que levam a um desgaste maior de energia em prejuízo da economia interna da personalidade da criança” (Duarte, 1989, p. 80). E ainda, “qualquer crescimento implica em mudança e mudança implica em crise. Não há evolução ou progresso sem ansiedade” (id.).
Outra questão a ser entendida diz respeito à alternância de casas na guarda compartilhada ou o intervalo de visitas na guarda exclusiva, uma vez que o distanciamento por dias ou semanas pode causar na criança medo de abandono, bem como desapego com o ausente. Freqüentemente essas crianças fantasiam que o progenitor ausente a abandonou. Por isso, a guarda exclusiva com “visitas” quinzenais de um dos pais implica em muito tempo de ausência para a criança. O melhor, quando a criança se vincula muito bem com ambos os pais, é que ela possa estar com eles por um grande tempo, com suas presenças efetivas.
Nesse ponto, é preciso sublinhar que a percepção psicológica que tem a criança da passagem do tempo cronológico é notavelmente diferente da percepção que tem um adulto, conforme escreveu Dolto (1997). Por exemplo, o que para a percepção de uma criança representa um mês pode corresponder na realidade a uma semana, segundo a percepção temporal de um adulto. Nesse sentido, a guarda compartilhada vem ao encontro da necessidade da criança, pois diminui o tempo de ausência dos pais.
Um dos argumentos utilizados para justificar a guarda exclusiva, ou para combater a compartilhada com alternância de casas, é o de que, na segunda, a criança perderia o referencial de lar. No entanto, o referencial que não pode ser perdido é o dos pais. A criança, filha de pais separados, tem condições de se adaptar à nova vida e criar vínculo com duas casas, desde que tenha bons vínculos com os pais (cuidadores). Pelo convívio com ambos os pais essas crianças apresentam-se seguras, não demonstrando o medo do abandono. O grau de intimidade da criança com os pais garantir-lhe-á segurança e permitirá que ela tenha experiências para além da extensão do lar. Crianças nessas condições geralmente adaptam-se bem a situações novas, podendo lidar com frustrações e limites de forma mais tranqüila. Tratam-se aqui de crianças que tiveram convivência freqüente com seus pais; a pais participativos, que sempre dividiram a criação de seus filhos. Se assim não for, acredita-se que fortalecer os vínculos entre pais e filhos deve anteceder o estabelecimento da guarda.
No estabelecimento da guarda deve-se priorizar os vínculos existentes entre a criança e seus pais, e não a relação do ex-casal, pois as desavenças destes farão com que nenhum tipo de guarda seja satisfatório. O bom ajustamento da criança à nova vida e a sua situação emocional poderão ser afetados pelas desavenças de seus pais.
Aberastury afirma a importância do fato de o bebê ou a criança pequena ir se acostumando com as necessidades dos pais, dizendo que “a vida de uma criança não pode anular a dos pais” (Aberastury, 1982, p. 270). Se os seus pais agora têm casas separadas, também os filhos, consequentemente, terão duas casas, pois não é por causa da separação que se deixou de ser pai ou mãe. Por ser inevitável que cada um tenha uma casa, deve-se permitir que a criança se adapte a essa nova situação. Se a criança oriunda de uma separação vier a apresentar problemas de comportamento, eles estarão mais relacionados com os problemas da relação entre os pais. Alguns autores, como Dolto (1989), acreditam que a solução é os pais continuarem a se entender para que a criança viva o momento com cada um dos progenitores, se possível, e possa estar a par da sua situação, e para que saiba que os seus pais, embora divorciados, sentem-se ambos responsáveis por ela.
Essa é uma situação ideal, que raramente acontece. O estabelecimento da guarda independe da relação entre os ex-cônjuges. Os problemas desta relação interferirão independente de ser a guarda exclusiva ou compartilhada. São muito comuns as queixas dos pais que não detêm a guarda de que não conseguiram pegar os filhos nos dias de visitas, porque estes saíram com a mãe ou foram para a casa de um amigo, da avó, enfim, não estavam em casa no dia e horário combinado ou determinado judicialmente. Ao expor essa idéia em um congresso brasileiro de Direito de Família, um juiz comentou que estava se dando conta de que é a segunda-feira o dia em que mais ocorre a entrada de petições nas Varas de Famílias, pois um grande número de pais que não detêm a guarda noticiam o impedimento que tiveram na tentativa de estarem com os seus filhos em visitas agendadas para o final de semana.
Ultrapassando a questão da guarda, o importante é permitir que a criança conviva com ambos os pais, mas para tal, faz-se necessário levar em conta – e isto deve anteceder o estabelecimento da guarda - as relações entre pais e filhos, a segurança e os vínculos estabelecidos.
Outro ponto de grande importância a abordar, por guardar relação estreita com as questões aqui tratadas, diz respeito à estruturação psíquica da criança, em Freud e Lacan. Na leitura lacaniana da obra de Freud (1976), as estruturas clínicas possíveis são as neuroses (histérica, fóbica e obsessiva), a psicose e a perversão. Essas estruturas estão marcadas pelo Édipo em Freud e Lacan, sendo que este introduziu o conceito de metáfora paterna que é o ápice resolutório do complexo de Édipo. Para Bleichmar, “O sujeito constitui-se como tal no seio da situação edípica, porque, se o superego e o caráter se formam em conseqüência do que acontece nela, então esta situação aparece como condição estruturante do sujeito” (Bleichmar, 1984, p.14).
Esse mesmo autor afirma que,
“se o Édipo intervém determinando o tipo de escolha de objeto, a identidade do sujeito, como este e seu desejo se constituem, seus mecanismos de defesa, a perversão que implica uma determinada identidade, uma posição perante o desejo, uma escolha de objeto, estará, então, marcada pelo Édipo. (Bleichmar, 1984, p. 16)
Lacan (1985), no seminário sobre a psicose escreve que na psicose, alguma coisa não funcionou, não se completou no Édipo. A importância do Complexo de Édipo também pode ser ressaltada a partir de afirmações como: “O complexo de Édipo é o núcleo das neuroses” (Freud, 1969, Vol. XII, p. 241). Ou ainda, “É justamente a foraclusão do significante primordial nomes-do-pai, o fracasso da metáfora paterna e não aceitação da castração simbólica que caracterizam a psicose como estrutura diferente da neurose” (Stahelin, 1985, p. 21).
Freud (1976) percebe que as crianças dirigem seus primeiros desejos e curiosidades sexuais a quem lhes são mais próximos, os pais. Em suas palavras,
Quando ainda é uma criança, um filho começa a desenvolver afeição particular por sua mãe, a quem considera pertencente a ele; começa a sentir o pai como rival que disputa a posse da mãe. Da mesma forma, a menina considera sua mãe como uma pessoa que interfere na sua relação afetuosa com o pai. (Freud, 1976, Vol. XV, p. 248).
A triangulação do mito edípico se dá num primeiro momento, na tríade mãe/filho/falo. O falo, inicialmente, corresponde ao pênis. O menino, com medo de perder o pênis, vira as costas à mãe, como objeto de prazer. No menino, é a ameaça à castração que põe fim ao complexo de Édipo.
Já a menina, protesta contra o fato de não ter recebido um pênis, “não pode perdoar a mãe por havê-la trazido ao mundo tão insuficientemente aparelhada” (Freud, 1976, Vol. XXIII, p. 22). Diferentemente do menino, a menina entra no complexo de Édipo pela castração. O falo que, no primeiro momento, era simbolizado pelo pênis, agora ganha a sua amplitude, tornando-se o representante da falta, o que impulsiona o desejo.
Voltando ao primeiro momento do Édipo, o filho é o falo para a mãe e esta o possui. Forma-se uma díade completa, onde nada falta, logo não havendo lugar para o desejo. Esta completude precisa ser quebrada, para que se possa desejar fora dela, sob pena de se cair numa psicose, pois “nada falta ao psicótico, e isto tem cheiro de morte” (Stahelin, 1992, p. 42).
Para romper esta díade, necessita-se um terceiro, o pai. O pai entrando em cena irá perturbar a harmonia do primeiro tempo. Ele aparece como privador do desejo e do objeto fálico. Com a entrada do pai, a criança deixa de ser o falo e a mãe de tê-lo. Agora, imaginariamente, o falo é o pai. Assim, é feita a castração simbólica de um objeto imaginário, o falo. O pai, dessa forma, introduz um corte, uma separação simbólica entre mãe e filho.
Assim opera-se a castração, que é um ato. Ato que cinde e dissocia o vínculo imaginário e narcísico entre mãe e filho. A castração então se define pela separação entre a mãe e a criança, pelo corte que o pai faz, instaurando aí uma lei, surgindo a partir daí, a expressão usada por Lacan, o Nome-do-pai. É no corte da relação mãe/filho, que opera o que Lacan denominou Metáfora Paterna – uma substituição significante.
A Metáfora Paterna introduz o significante nome-do-pai que substituirá o significante desejo da mãe. O desejo da mãe passa ao inconsciente da criança, possibilitando que ela exista além da mãe, permitindo-a surgir como sujeito desejante. É a substituição do significante fálico pelo significante nome-do-pai que se chama processo de metaforização. É esse processo que vai possibilitar a criança colocar-se como sujeito e não apenas como objeto do desejo. Segundo Dor (1992),
a metáfora paterna institui um momento radicalmente estruturante na evolução psíquica da criança. Além de inaugurar seu acesso a dimensão simbólica, afastando a criança de seu assujeitamento imaginário, a mãe, ela lhe confere o status de sujeito desejante. (Dor, 1992, p. 94)
Produzida a castração simbólica, o falo deixa de ser alguém para se instalar na cultura, como também a lei. O falo será algo que se quer, que se precisa imaginariamente, mas que não se é. A partir da lei, lei da proibição do incesto, a criança ascende ao desejo, e irá dirigi-lo a outros.
Como já dito anteriormente, as estruturas estarão marcadas a partir do Édipo, com a instauração da lei. Assim, pode-se pensar, até como uma forma de conceituá-las, a relação de cada uma com a lei. Elas dão conta de como o sujeito se articula com a lei, de como essa se inscreve, não se tratando de uma “normalidade” ou uma “patologia”, mas um modo de relação, um jeito de entrada, ou não, na cultura.
Cumpre ressaltar que, para Lacan, mãe e pai são funções (função materna e função paterna), que não têm a ver com o sexo e com os pais reais. No entanto, parece que há a necessidade que essas funções sejam incorporadas pelos pais, quando estes existiram ou existem. A partir do atendimento a crianças privadas do contato com um dos pais, pode-se constatar que, posteriormente a uma convivência com ele, a função paterna coincidia com o pai real. Nesses casos, verifica-se a complicação desta com a lei e uma certa “desestruturação”, confusão entre significante e significado, apresentando traços psicóticos ou perversos. Parece que a função paterna já tinha sido incorporada pelo pai real, mas a metáfora paterna ainda não havia operado.
Seguindo este raciocínio encontram-se as seguintes afirmações que dizem respeito aos pais reais: “certos autores demonstram, estatisticamente, que a ausência de um dos pais sempre se verifica nos quadros psicóticos” (Checchinato et al., 1988, p.39); “Para o inconsciente da criança, o necessário é que haja um adulto que a impeça de ter uma intimidade total com seu genitor” (Dolto, 1989, p. 77); “Interessar-se por cada um dos filhos e não deixar que seu papel seja desempenhado por outrem é a função simbólica e afetiva do genitor ausente de casa” (Dolto, 1989, p. 41); “O menino precisa de homens para se construir, mesmo que esteja confiado à guarda da mãe” (Dolto, 1989, p. 48); “Tanto a menina quanto o menino precisam da presença masculina para se desenvolver bem” (Dolto, 1997, p.15).
Nessa mesma linha, com relação à identificação, Badinter (1993), comentando Corneau, escreve:
“De acordo com o belo título do livro de G. Corneau, esses pais “faltantes” engendram filhos “faltosos”, isto é, “com falta de pai”. A ausência de atenção (de amor?) paterna tem como conseqüência impedir o filho de se identificar com ele e de estabelecer sua identidade masculina. O resultado é que esses filhos com falta de amor paterno permanecem na órbita materna, atraídos apenas pelos valores femininos. “Eles olham o pai e sua virilidade com os olhos da mãe. Se esta vê o pai como brutal, obsessor, sem afetividade, o filho formará uma imagem prejudicada do pai e se recusará a ser como ele”. (Badinter, 1993, p. 152).
Finalmente, sobre a relação entre a função simbólica e o pai real, afirma Dor (1991),
A demarcação da função simbólica do pai que diz respeito à existência contingente do Pai real determina uma das bases mais fundamentais da clínica psicanalítica. Não seria necessária outra prova mais convincente do que lembrar que a edificação do pai simbólico a partir do pai real constitui a própria dinâmica que regula o curso da dialética edipiana e, com ela, todas as conseqüências psíquicas que dela dependem. (Dor, 1991, p.43).
Outra questão que se torna importante esclarecer, pensando também a partir do atendimento a crianças, é a de que a ausência de um dos pais que conviveu com a criança pode gerar nela sintomas que não se confundem com as estruturas clínicas. Esses sintomas, como já dito anteriormente, surgem da sensação do abandono que estas crianças fantasiam sofrer e pela falta (da realidade) causada pelo ausente. São crianças que, por exemplo, sempre foram ótimas alunas e repentinamente, ante à ausência do pai ou da mãe, têm uma queda na produção escolar, muitas vezes levando a reprovação; outras que passam a ter insônia; outras que ficam ansiosas, agressivas, deprimidas, enfim, marcadas por algum sofrimento. Em face disso, retorna-se à pergunta: qual a relação destes sintomas com a falta causada com um dos pais e com o tipo de guarda estabelecido?
Fim da Parte 1 de 2